A bailarina

09/04/2016 às 13:32.
Atualizado em 16/11/2021 às 02:52

A realidade, meu velho, é outra coisa! É o que acabo de dizer para a pessoa no espelho. E a deixo rapidamente, antes que entre nós floresça mais uma vez a identificação. Eu não sou aquele. Se o fosse, bastaria duas horas de academia três vezes por semana para ser feliz. O nó da questão é que a paz, pela experiência mundana, parece morar sempre um pouco à frente ou, quando encontrada, escapa como areia entre os dedos. Nada nesse mundo é definitivo, dizem. Odair José tinha tanta certeza que nos entregou os versos, embalados em melodia: “Felicidade não existe, o que existe são momentos felizes”. Até quem o achava brega, costumava cantarolar a música de vez em quando.
O que está mais adiante é a realidade. Se não a alcanço é porque a interpreto antes. Mesmo sabendo que meu tradutor de fatos não passaria em nenhum teste de conhecimento, é a ele que recorro sempre. Com fracasso atrás de fracasso, ainda assim confio a ele a palavra final sobre os acontecimentos. Ele fala, eu escuto, depois transformo em crença o ditado. E torno a tropeçar em seguida nos significados que aprendi e repito.
O Ego se compraz: quanto mais adoeço, mais útil ele parece. Se a angústia espreita, elejo, a seu conselho, um culpado, acredito que atacar é justificável e a vida parece, então, mais suportável. O problema é a Dilma e o Lula ou os coxinhas e os golpistas. Pode ser, também, a mulher, o amigo ou o trabalho. Qualquer coisa, não importa. O tradutor é bem flexível e tenho total liberdade de escolher um lado. A batalha me suga as energias, me entorpece os sentidos e me faz rir da possibilidade de existir algo fora do alcance da minha vista. “É a realidade, estúpido!”, insiste.
A beleza, no entanto, é uma bailarina. Ela me dá um verso, uma música, às vezes um gesto, uma paisagem, uma palavra basta, e acordo do sonho que era, até então, “a realidade, estúpido”. Meus olhos derramam lágrimas de reencontro. Subitamente, estou em paz, lúcido e feliz. Desta vez, porém, passo a chave na gaveta de significados. Preciso de tempo. Toco a realidade, constato a existência da felicidade, a paz me transporta além da matéria. O bem estar me revela a saúde como propriedade da mente, não do corpo. Basta o bom exercício para produzir céu em lugar do inferno nosso de cada dia.
A mente é o palco da bailarina. Ela me ensina a formosura dos seus movimentos, passo a passo: a qualquer sensação de mal estar, interrompa o ritual de infelicidade e lembre-se de que é apenas o seu tradutor repetindo velhos ditados, te induzindo a acreditar que é frágil, incapaz e não merecedor. Mentira! Mas não brigue, não resista, não faça qualquer esforço. Não pode haver luta ou vai perdê-la. Este é o campo do tradutor e você não tem olhos de ver no escuro. A verdade, alerta a bailarina, está onde sempre esteve. Ela não entra em disputa, apenas é. O exercício, sussurra, é esvaziar a mente e pedir a graça dos reais significados. Eles sempre veem. E Deus dá uma piscadela para lhe conferir autoridade.

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