(Reprodução)
Escavações às margens da lagoa dos Patos, em Pelotas (RS), revelaram que ao menos alguns dos habitantes originais do Brasil já tinham cães domésticos mais de mil anos antes da chegada dos europeus. Trata-se do mais antigo registro da presença de cachorros no território brasileiro e o primeiro da época anterior a Cabral.
"Foi uma surpresa interessante", afirma a bioarqueóloga Priscilla Ulguim, que faz doutorado na Universidade de Teesside (Reino Unido) e é uma das responsáveis pela descoberta, ao lado de colegas da Universidade Federal de Pelotas e de instituições argentinas. "É um trabalho que está no começo, mas queremos contribuir para responder às perguntas mais amplas sobre como e quando os cães foram domesticados no continente."
Dois dentes (ambos molares) e fragmentos do maxilar encontrados pelos arqueólogos foram os indícios usados para determinar que se tratava de um cão doméstico, provavelmente de porte médio.
Os pedaços da anatomia do animal foram comparados com os de parentes selvagens dos cachorros que, ao contrário deles, são nativos da América do Sul, como o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) e o graxaim (Lycalopex gymnocercus) -esses dois, na verdade, estão mais para raposas do que para lobos ou cães. Detalhes das cúspides (as partes "pontudas" dos dentes) e do esmalte dentário, por exemplo, são suficientemente diferentes entre uma espécie e outra para que a identificação seja feita de forma confiável.
Datações feitas com o método do carbono-14, a partir de amostras de colágeno do fragmento de maxilar, indicam que o cão morreu entre 1.700 e 1.500 anos atrás.
CERRITOS
O local de origem dos fragmentos, conhecido como Pontal da Barra, abriga um complexo de 18 pequenos morros artificiais de um tipo relativamente comum no Rio Grande do Sul, no Uruguai e na Argentina. São os chamados cerritos, formados por séculos da presença de grupos de caçadores-coletores, muitos dos quais exploravam recursos marinhos (no caso dos cerritos do litoral propriamente dito) ou aquáticos (no caso da lagoa dos Patos).
Também há quem fale na construção de cerritos como monumentos funerários. Coincidência ou não, no morrinho de 36 metros de largura apelidado de PSG-07, onde foram encontrados os ossos do cão, também havia três fragmentos de um crânio humano e um dente de uma pessoa, cerca de meio metro abaixo do cachorro.
Se havia mesmo uma associação entre funerais humanos e o enterro de animais, a situação em Pelotas talvez não fosse muito diferente da registrada em alguns dos poucos sítios América do Sul afora onde também foram encontrados cachorros da época pré-colombiana. Em escavações na Argentina e no Uruguai, também foi revelada a presença de cães em contextos mortuários.
"Quando a gente pensa em caçadores-coletores, a domesticação do cão costuma ser imaginada como uma atividade de auxílio à caça, mas não se pode desconsiderar também o aspecto simbólico e afetivo, como animal de estimação, e talvez esses sepultamentos apontem para isso", pondera Priscilla.
De fato, a história da domesticação dos cães parece ter sido mais complicada no continente americano do que no Velho Mundo. A espécie certamente foi o primeiro animal a se transformar em parceiro do ser humano em tempo integral, talvez há cerca de 20 mil anos, quando a nossa espécie estava prestes a colonizar as Américas.
Nas Américas do Norte e Central há registros da presença do cachorro doméstico com cerca de 10 mil anos de idade, enquanto na América do Sul só há sinais da espécie a partir de 7.500 anos atrás, com presença mais clara nas regiões montanhosas dos Andes.
Por outro lado, entre as sociedades indígenas das chamadas terras baixas sul-americanas -termo que inclui todo o atual Brasil-, quase não se vê sinal dos cachorros domésticos antes da conquista europeia.
A história complexa pode indicar que a domesticação do animal ocorreu mais de uma vez de forma independente e por motivos diferentes. No México pré-colombiano, por exemplo, cães de pequeno porte e pouco pelo, talvez aparentados aos chihuahuas modernos, eram criados como fonte de alimento.
PEIXADA?
Apesar dos restos esparsos do animal gaúcho, foi possível realizar uma análise química preliminar que indica a possibilidade de que ele tinha uma dieta baseada em recursos aquáticos, como peixes. Mais estudos são necessários para comprovar a hipótese -se esse era mesmo o caso, é plausível que os bichos fossem alimentados com a sobra das pescarias dos moradores da lagoa dos Patos.
O estudo foi publicado na versão online da revista científica "International Journal of Osteoarchaeology".