Míriam Vaz Chagas*
Em voga no momento a discussão em torno das soluções a serem adotadas pelo Estado em meio a um cenário de grave crise em que se acha mergulhado o combalido sistema carcerário brasileiro, surpreendido pelos lamentáveis episódios de rebelião que eclodiram em unidades prisionais da região norte do país no início do ano.
Alguns setores da sociedade, porque catapultados a enfrentar, sem válvula de escape, o tormentoso problema do encarceramento, diante do bombardeio midiático de cenas grotescas, sequer comparáveis às alegorias infernais descritas por Dante, com direito a imagens de degola e esquartejamento, debruçaram-se na árdua tarefa de encontrar alternativas à luz em um mínimo de embasamento estatístico que permita a correta identificação das causas geradoras deste estado de caos.
Evidentemente que não existem soluções prontas e de excelência para esse complexo problema, especialmente se considerados anos de irresponsável leniência estatal no que respeita à necessidade da realização de investimentos na área, com especial destaque para a questão da disponibilização de novas vagas, haja vista não somente o déficit histórico, da ordem de 244 mil, como também a circunstância de se acharem em aberto cerca de 437 mil mandados de prisão, que acaso cumpridos, simplesmente levariam à inviabilidade absoluta do sistema carcerário.
Aliás, nunca é demais pontuar que a questão do investimento no sistema carcerário sempre passou ao largo das maiores prioridades dos governos, o que se soma à ausência de ações sociais que tenham por objetivo o fomento de políticas fundantes e de longo prazo, com foco na educação e no bem-estar social da população, como meio mais adequado a se evitar o alargamento da porta de entrada para a criminalidade.
Sob este prisma, resta bastante evidente que o Estado não tem feito o dever de casa, o que tem levado o Judiciário a assumir um protagonismo pouco recomendável nesta arena, evidenciado pelo surgimento de construções jurisprudenciais que buscam a qualquer custo o distensionamento do sistema, colocando em risco a própria higidez do sistema progressivo de cumprimento de penas, a partir da liberação de indivíduos do cárcere segundo hipóteses não previstas na legislação, a exemplo do norte seguido pela Súmula Vinculante 56 do STF.
Lado outro, força é convir que a compreensão das causas apontadas para a falência do sistema carcerário passa por uma visão romântica e muitas vezes equivocada sobre o verdadeiro enquadramento de algumas questões, entre as quais desponta a relacionada ao número de prisões provisórias no Brasil.
Segundo dados oficiais, 39% dos presos brasileiros estariam em situação provisória, levando parcela de atores do Sistema de Justiça Criminal a concluir que uma das maiores razões do inchaço do sistema carcerário se deveria a esse elevado percentual, culpando-se o Poder Judiciário por essa mazela, entre as muitas que já se encontram debitadas injustamente em sua conta, a partir de um discurso massivo e despido de honestidade junto à imprensa, o que tem contribuído para eclipsar a responsabilidade do Executivo neste campo.
É fato que os relatórios do Ministério da Justiça e da Human Rights Watch são falhos ao estamparem aquele percentual para a contabilização dos presos provisórios no Brasil. Nos cálculos realizados por via dos sistemas estaduais de INFOPEN, a partir dos quais é alimentado o nacional, do DEPEN, é considerado provisório não só aquele que possua uma única prisão provisória, como também o que tenha essa modalidade de prisão decretada em seu desfavor, mas igualmente uma ou mais prisões oriundas de condenações em definitivo. Ou seja, muitas vezes um preso vem sendo considerado provisório, quando na verdade é definitivo para todos os efeitos em outro processo. Se considerados apenas os presos “puramente” provisórios, certamente que o percentual cairia para uma média próxima à encontrada em países de densa demografia, como é o caso de Estados Unidos, China e Rússia.
Pois bem. Seria, então, correto afirmar-se que o Judiciário “prende muito e prende mal” ou mais razoável admitir-se que há, sim, um descompasso abissal entre o número de presos no Brasil e o número de vagas disponíveis? Partindo-se desta verdadeira premissa, tanto melhor sejam canalizados esforços na construção de soluções efetivas, a serem concretizadas por alterações legislativas que tenham o condão de romper realisticamente a perversa lógica do encarceramento, como também para se exigir do Executivo o compromisso de garantir, no curto prazo, número razoável de vagas para dar cabo, com um mínimo de dignidade, do imenso contingente de presos que bate às portas do sistema todos os dias.
(*) Juíza da Vara de Execução Penal de Ribeirão das Neves (MG)