Camila Soares Gonçalves*
A queda do edifício no centro de São Paulo, em 1º de maio deste ano, decorrente de um incêndio, trouxe à tona as discussões envolvendo invasões e ocupações de imóveis de propriedade de órgãos públicos. Isso porque o referido prédio pertencia à União, já tendo sido sede da Polícia Federal, e encontrava-se cedido à Prefeitura Municipal, sendo ocupado por populares desde meados de 2000.
Diante disso, surgem alguns questionamentos: A ocupação era legal? Qual a diferença entre ocupação e invasão? É possível usucapir bens públicos, assim como ocorre com os bens particulares? E o direito à moradia e o princípio da dignidade da pessoa humana, como ficam?
A Constituição Federal proíbe a usucapião de bens públicos, conforme previsto nos arts. 183, §3º e 191, parágrafo único. Todavia, a mesma constituição assegurou o princípio da função social da propriedade, em seu art. 5º, inciso XXIII, transformando-o em um direito fundamental quando analisado sob o viés do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e do direito à moradia, também previstos constitucionalmente.
Verifica-se um aparente conflito de garantias constitucionais, pois, de um lado está a vedação de usucapião de bens públicos e, de outro, o direito à moradia e os princípios da dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade. E qual é o cenário brasileiro atual?
O déficit habitacional no Brasil aumentou de 6 milhões e 68 mil moradias em 2014, para 6 milhões e 355 mil em 2015, conforme pesquisa da Fundação João Pinheiro, divulgada em abril de 2018.
Ou seja, mais de 6 milhões e 350 mil pessoas no Brasil vivem em moradias precárias, com coabitação familiar, aglomeração excessiva de moradores ou alto valor de aluguel.
De outro lado, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2015, existem 7.906 milhões de imóveis desocupados no Brasil, com potencial de serem ocupados. Dentre eles, 10.304 imóveis são de propriedade do Governo Federal.
Nesse cenário, visualizam-se milhares de pessoas vivendo às margens da sociedade no Brasil, morando sob marquises e pontes, sem qualquer propriedade. Somente no edifício que desabou em São Paulo, segundo o Ministério do Planejamento, existiam 400 pessoas morando indignamente, pois a moradia era deficitária (sem luz, água quente, água e esgoto tratados, dentre outros).
Em contrapartida, há uma série de imóveis públicos abandonados, ociosos, paralisados, tais como o que desabou, que não observam sua função social enquanto propriedade. Essa conjuntura propicia a ocupação das áreas públicas estéreis por pessoas de baixa renda, que não possuem qualquer moradia, tornando a propriedade útil, dando-lhe um fim social.
Nesse ponto, importante diferenciar a invasão da ocupação, pois a primeira apresenta contornos de ilegalidade, quando adentra-se em propriedade alheia já habitada, por exemplo. Já a ocupação é apenas irregular, mitigando-se a ilegalidade pelo fato de a posse ser legal, a exemplo da ocupação de imóvel abandonado, onde se atribui uma finalidade e destinação útil ao bem.
Lado outro, no que toca aos bens públicos, estes dividem-se em bens de uso comum do povo (praças, ruas, estradas etc.), bens de uso especial da administração pública (prédios onde funcionam repartições públicas, órgãos públicos etc.), e bens dominicais ou dominiais (terras devolutas, imóveis desocupados).
Não é razoável continuar aceitando que o particular tenha de cuidar do seu patrimônio, sob pena de ele ser usucapido, e que o Poder Público, que visa exatamente o interesse da coletividade, não o faça. E é exatamente isso que ocorre com os bens públicos dominicais, que estão completamente ociosos e sem qualquer destinação.
Assim, questiona-se, por que não usucapir bens públicos dominicais? Tal questão deve ser objeto de reflexão, pois tornar possível a usucapião de bens públicos que descumpram a função social da propriedade (dominicais), tais como os imóveis desocupados e ociosos, além de promover a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional maior, estimularia, ainda que pelo receio de sanção, que o Estado se atentasse à gestão do seu patrimônio em benefício da coletividade.
Por isso, entende-se ser possível que os bens públicos dominiais sejam usucapidos. A uma porque atribui-se uma finalidade social à propriedade que encontrava-se paralisada pela ausência de cumprimento da função social por parte do Poder Público (art. 5º, XXIII). A duas porque os cidadãos brasileiros têm direito à moradia digna). A três porque defende-se a ocupação (posse legal), e não a invasão. A quatro porque a usucapião de bem público estará proporcionando a supremacia do interesse público pois, além de permitir uma moradia digna aos particulares que a adquiriam, fará com que o Estado observe com mais rigor a destinação de suas propriedades públicas dominicais, garantindo o interesse público indiretamente e proporcionando o acesso à posse como instrumento de redução de desigualdades sociais e justiça distributiva.
*Advogada, mestranda pela Universidade Fumec. Pós-graduada em Advocacia Cível pela ESA-OAB/MG e pós-graduada em Direito Tributário pela PUC Minas.