'Demitam um técnico por ano e bancarão o futebol feminino', diz Marco Aurélio Cunha

Henrique André
hcarmo@hojeemdia.com.br
01/11/2018 às 15:28.
Atualizado em 28/10/2021 às 01:33
 (Rubens Chiari/SãoPaulo.NET)

(Rubens Chiari/SãoPaulo.NET)

Coordenador das Seleções Femininas do Brasil e um dos diretores de futebol da velha guarda que ainda despertam a atenção dos grandes clubes do país, o paulista Marco Aurélio Cunha virou assunto em Minas Gerais nesta última semana; tudo devido à demissão de Alexandre Gallo no Atlético e a escolha do ex-atacante Marques para ser o substituto interino.

Nas redes sociais, muitos atleticanos citaram o nome do cartola de 64 anos e o colocaram como melhor opção para ocupar o cargo que, desde a morte de Eduardo Maluf em junho do ano passado, ficou sob desconfiança.

Nesta entrevista exclusiva ao Hoje em Dia, Marco Aurélio fala sobre sua trajetória no futebol, comenta a escassez de diretores de futebol no país, responde se foi ou não procurado pela diretoria do Atlético, apoia a efetivação de Marques e opina sobre a má vontade dos clubes em investir no futebol feminino. 

Como você recebeu a notícia de que muitos torcedores do Atlético desejam que você seja o novo diretor de futebol do clube?

Notícia é uma coisa. Desejo, vontade e ser lembrado é outra completamente diferente. Fico bem feliz por ser lembrado em lugares que não trabalhei ainda. Pra mim não tem vaidades, mas tem certamente uma alegria muito grande por ser lembrado neste momento, depois de tanto tempo trabalhando no futebol, com crédito e uma imagem positiva.

Houve algum contato do Atlético?

Não. Jamais houve. Estou muito bem aqui na Seleção (feminina). A CBF é uma casa extraordinária e tenho muito respeito de todos aqui pelo trabalho que eu faço. É um prazer muito grande trabalhar aqui, principalmente neste desafio que é o futebol feminino.

Por que o mercado para diretor de futebol está tão escasso de boas opções atualmente?

Primeiro é uma especialidade nova que precisa de conhecimento, ética e firmeza. Pedimos para que nossos jogadores e ídolos façam este papel, e eu acho que devem ser eles mesmo, mas desde que bem instruídos, preparados e com cursos. Só a vivência de campo e vestiário não são suficientes. Precisam ser respeitadores com os clubes e entender como eles funcionam. Cada clube tem sua cultura e característica. O Santos, por exemplo, é um time que joga ofensivamente; se fizermos um time cascudo, perdemos credibilidade. O DNA do clube não é esse. Acredito que o Atlético, assim como o Corinthians, seja um time emocional. É um clube ofensivo, que joga pra frente, com velocidade, atuando pelos lados do campo, não dando sossego para o adversário; se fizer um estilo diferente deste, não dará certo.

Agenda (mailing) é o principal trunfo para um diretor de futebol hoje?

Quanto mais relação você tem, mais promíscuo você é, entende? Se você tem respeito no mercado, a relação já existe. Quem faz a relação é a bandeira do clube. Todo mundo quer colocar jogador no Flamengo, no Atlético, no Cruzeiro, no São Paulo, no Palmeiras... Se não houver um filtro ético muito grande e ao mesmo tempo firmeza, as relações podem ser contaminadas. É preciso ter noção de quem se pode contratar também, conhecendo o mercado, e pensando na ação que vai subir (jovens talentos, destaques de divisões inferiores); a ação que está cara (grandes jogadores) todo mundo já conhece. É importante ter contatos para analisar jogadores de 16 a 18 anos, jogadores da Série B, etc.Rafael Ribeiro/CBF 

Quais foram suas principais dificuldades no primeiro trabalho como diretor de futebol, quando foi contratado pelo Coritiba?

Sabe o que acontece? O aprendizado não se dá no cargo. Ele se dá antes. Quando eu cheguei ao Coritiba, eu tinha passado pelo Bragantino, pelo Guarani e por um período no Japão, onde aprendi muito sobre gestão. Num clube pequeno, você faz tudo. Vê ônibus, ambulância que não tem, o departamento médico, arruma o restaurante para almoçar, faz compra... Lembro que o Luxemburgo, no Bragantino, encheu o carro. Fazia compras, comprava tijolo e tudo mais. A gestão é inspirada por dificuldades e não por facilidades. É fácil ter um caminhão de dinheiro e torrar tudo. Vivendo, vi aquilo que um dirigente não sabia por não viver.

O diretor às vezes é o responsável por resolver conflitos e até cobrar a famosa “caixinha” dos atletas. Como lidar com isso?

Bom, eu falo para os meus filhos que eles sabem o que é errado. O jogador está cansado de saber o que é errado também; então não precisa discutir. Se errou, paga. Tenho uma teoria que o jogador que leva o terceiro cartão amarelo e fica suspenso tem que viajar com o clube. Não é folga. Quantas vezes você vai jogar longe e o cara leva o cartão? Tem que viajar, pra dar autógrafo, entrevistas, ficar conversando no saguão do hotel... É um dia pago e não dia de folga. Isso pode diminuir muito o número de cartões por indisciplina.

E jogadores com privilégios? Isso racha grupos?

Nós vivemos um problema no Brasil, que é a carência de grandes ídolos que levam torcida a campo. Eles acabam sendo tratados de maneira privilegiada, porque são quase únicos, e às vezes têm que ter alguns caprichos. Eu não gosto disso, mas reconheço que alguns jogadores excepcionais precisam de algum tipo de tratamento especial. Mas têm que estar envolvidos.

O que o Marques, acionado como interino para suceder Gallo, tem que fazer para obter sucesso nesta nova função dentro do Atlético?

O Marques tem que ser menos jogador e mais dirigente. Ser jogador passou e ele é um cara muito legal. Acho que o Atlético deveria investir nele, com toda honestidade. Ele não tem que se submeter a aquele sentimento exacerbado do jogador. Essa transição é muito difícil, de sair do vestiário, subir a sala e colocar um paletó. Ter o sentimento do atleta é fundamental, mas ao mesmo tempo precisa ser austero para não ser enganado. O próprio jogador quer tirar vantagem pelo bom relacionamento. Coisas pequenas contaminam e viram grandes. Se ele souber evitar esse tipo de situação, tem chances de ser um grande dirigente.

Como você encara este fenômeno do futebol feminino chamado Marta? O que ela representa para o esporte no país?

Ela é um talento e uma pessoa excepcional. Ela merece todo tratamento especial. É envolvida, corre os 90 minutos, chora quando perde e sabe ser cobrada. Há outra personagem extraordinária, mas com menos idolatria, que é a Formiga. Se Deus permitir e ela não se machucar, ela vai à sétima Olimpíada seguida; um recorde absoluto entre atletas de esportes coletivos. Formiga é o símbolo da perseverança e a Marta o símbolo do talento.

Os clubes vão montar equipes femininas por obrigação a partir de 2019. Como você enxerga este panorama?

Quando você não consegue inspirar como deveria ser, às vezes certas obrigações são necessárias. Ninguém acreditou que a Lei Pelé pegaria; foi um chororô danado, inclusive. Os clubes se adaptaram e o futebol continua de pé. O futebol feminino vem se impondo no mundo todo e a Fifa já o vê como oportunidade de negócio e tem feito novos mercados. Jogamos um Mundial Sub-20 na Papua-Nova Guiné, por exemplo; o Sub-17 já disputou um na Jordânia. Estão tentando diminuir o preconceito com as mulheres, o religioso, e acho muito positivo. A mensagem que dou para os clubes é: demitam um técnico a menos por temporada, que conseguirão bancar todo o futebol feminino por um ano. Dinheiro tem, é só errar menos. Twitter/Reprodução 

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