Elas são o samba: encontro reúne sambistas em BH e em várias cidades do país e América do Sul

Jéssica Malta
jcouto@hojeemdia.com.br
23/11/2018 às 17:48.
Atualizado em 28/10/2021 às 01:59
 (Andreza Sena/DIVULGAÇÃO )

(Andreza Sena/DIVULGAÇÃO )

Sabe quando uma criança quer um brinquedo e não pode comprar, mas depois acaba ganhando? É assim que estou me sentindo”. A frase pode até parecer de uma novata no samba, mas quem diz isso é Dona Eliza, uma das matriarcas do gênero em Belo Horizonte, para definir o 1º Encontro Nacional de Mulheres na Roda de Samba. O evento ganha edição na capital mineira neste sábado (24). 

A sambista fala com propriedade – afinal, são mais de 50 anos de carreira – e destaca a importância da iniciativa (que se estende por outras cidades e capitais brasileiras e também por países sul-americanos). 

“Vejo o lançamento desse projeto como uma coisa muito linda e muito importante para nós, porque somos muito excluídas, muitos homens não nos aceitam no samba e isso vem de longa data”, afirma Dona Eliza. 

Mas, apesar de todos os obstáculos – e foram vários – a persistência manteve sua carreira, que hoje já ultrapassa décadas e soma mais de 700 composições. “Quero deixar um legado aqui. Não quero ir como eu vim. Tenho que deixar algo e quero deixar o melhor que eu posso, que é o samba, minha palavra, a minha letra e a minha melodia”, diz.

Diante das tantas gerações que se misturam no evento (serão cerca de 40 artistas), Dona Eliza já passa o bastão para as novatas. “Essas meninas que estão vindo, a Marina Gomes, a Gisele Campos, Aline Calixto, a Fernanda Bento, estão chegando para continuar com essa luta e conseguir o lugar da mulher no samba. É por isso que estamos batalhando e é isso que vamos conseguir”, afirma.

Mulheres na Roda 

É justamente para continuar com a luta de Dona Eliza e tantas outras que acontece o evento, idealizado pela cantora Dorina Barros. 

Em Belo Horizonte, a organização passa pelas mãos de Aline Calixto. “A Dorina é minha amiga, uma lutadora no meio do samba e, quando ela teve essa ideia, achei fabulosa. A coisa foi se espalhando e pegou mesmo”, destaca a artista.

Assim como Dona Eliza, a cantora ressalta a importância da iniciativa. “Não só o mundo do samba, mas o mundo de uma forma geral sempre tornou invisível o papel das mulheres. Não queremos mostrar que elas são melhores que os homens, não é isso. Queremos que elas tenham a mesma visibilidade”, pontua a cantora. “São dados que comprovei: nas rádios, a maior parte das músicas de samba e pagode é interpretada por homens”, afirma. 

Tais dificuldades não vêm de hoje. “Dona Ivone Lara, uma das maiores compositoras do Brasil, teve a obra reconhecida tardiamente, porque mulheres não podiam assinar suas composições. É absurdo pensar que ela passou por isso há menos de 40 anos”, afirma. “Hoje estamos em um momento muito melhor, mas há um fator que precisa ser equilibrado, são muitos anos de invisibilidade”, reitera. 

E, para dar força àquelas que ultrapassaram essa barreira, a primeira edição presta homenagem à Beth Carvalho. “Quando ela ficou sabendo, ficou super feliz. A Beth é sempre uma apoiadora das mulheres, pessoa muito generosa, sempre atenta a quem está começando”, diz Calixto, que adianta: é com “Coisa de Pele”, uma das canções eternizadas na voz da sambista, que simultaneamente todas as rodas se abrem ao redor do país e na América do Sul. Flávio Charhar/Divulgação 

PRODUÇÃO – Aline Calixto é uma das responsáveis pela organização do encontro

 A união feminina faz a força e forma uma roda mais plural 

“Quando veio esse convite, entendi que era uma forma de dar um protagonismo para as mulheres no samba, achei muito interessante”, conta a produtora Renata Almeida. E para ela–uma das mais de 50 mulheres que compõem a equipe do Encontro Nacional de Mulheres na Roda de Samba– há ainda outro fator importante da iniciativa: a construção de uma rede entre as mulheres. 

Não por acaso, entram em cena não apenas musicistas e cantoras nos palcos: toda a equipe que dá vida a iniciativa em Belo Horizonte é composta por mulheres. “Não tem nenhum homem; da comunicação a fotografia, portaria, equipe técnica, são todas mulheres”, pontua a produtora. “É uma possibilidade de colocá-las trabalhando em rede e gerar uma oportunidade para que essa roda renda frutos para outras ocasiões”, projeta. 

Há ainda a possibilidade de troca, ressaltada por Aline Calixto, que, aliás, além de subir ao palco, assume a produção do evento na capital. “Acredito que participar desse projeto, enquanto cantora que conseguiu uma visibilidade maior, é muito importante porque distribuo e trago isso para fortalecer o movimento de outras mulheres, para que elas também tenham o seu lugar de fala e sua profissão respeitada. Isso ajuda para que cada vez mais mulheres tenham mais visibilidade”, sublinha. 

Almeida reforça o coro, pontuando ainda o diálogo proporcionado pelas diferentes gerações de artistas que compõem a programação da Roda de Samba. “Temos gente que está começando e quem já tem muito tempo de carreira. É aquela coisa de uma puxar a outra e isso é muito bonito”, pontua. 

Para a produtora, o evento é ainda uma oportunidade de impulsionar a carreira de muitas artistas. “Tem muita mulher no samba e existem muitas rodas, mas que às vezes estão em locais que não conseguem atingir à massa ou que não conseguem atingir outras regiões da cidade”, explica. “Na coordenação, vimos que muita gente do samba ainda está na periferia e não tem muito conhecimento, então acabamos tendo a oportunidade de ajudar umas às outras em várias frentes”, diz.

Para além do recorte feminino, Almeida ainda pontua outras questões levantadas pelo projeto. “Nossa roda é formada por mulheres brancas, negras, homossexuais, heterossexuais. Essa pluralidade é muito importante”, acredita. 

Dona Eliza: Matriarca do Samba de BH

“Para chegar onde cheguei, queimei muito feijão, queimei muita batata. Não foi fácil, a jornada foi grande e perigosa”, conta Dona Eliza. Membro da Velha Guarda do Samba de Belo Horizonte por 11 anos e com uma carreira que já soma meio século, a artista teve que lidar não só com o machismo, mas também com a discriminação. “Tive momentos que... meu Deus do céu! Fariam qualquer pessoa pensar em desistir. Mas eu decidi continuar. Uma pessoa teve a desfaçatez de chegar para mim, quando eu estava buscando trabalho, de elogiar a minha voz, mas dizer que era uma pena eu não ter a pele um pouquinho mais clara”, recorda a sambista. “Isso bateu em mim como um tapa, daqueles que arranham”, confessa ela, que, apesar da dificuldade, celebra a volta por cima. “Consegui trabalho em outro lugar e, em um dia de casa cheia, essa mesma pessoa que falou da minha pele foi lá averiguar e me ofereceu o dobro para trabalhar com ela. Rejeitei e disse que eu continuava negra. Esse foi um momento crucial da minha vida”, lembra ela, que reforça o discurso de persistência. “Sabe quando eu vou desistir? Quando o Pai lá em cima me chamar. Mas enquanto ele me der vida, saúde e eu puder respirar, eu vou cantar em qualquer lugar que me chamarem”. Elmo Alves/Divulgação 

MATRIARCA – Com mais de 50 anos de carreira, Dona Eliza é um dos importantes nomes do samba de Belo Horizonte

  

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