CCBB recebe a mostra 'Iberê Camargo: um trágico nos trópicos'

Thais Oliveira - Hoje em Dia
26/01/2016 às 07:25.
Atualizado em 16/11/2021 às 01:10
 (Flávio Tavares/Hoje em Dia)

(Flávio Tavares/Hoje em Dia)

As figuras que povoam minhas telas envolvem-se na tristeza dos crepúsculos dos dias de minha infância. Nascem da minha saga, da vida que dói”. Essa maneira de pensar de Iberê Camargo (1914-1994) foi traduzida nas séries “Ciclistas” (1989), “As Idiotas” (1991) e “Tudo Te É Falso e Inútil” (1992) – produzidas nos últimos anos da sua vida. Expostos a partir desta quarta (27) no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), os trabalhos inspiraram o nome da mostra “Iberê Camargo: um trágico nos trópicos” – um recorte da carreira do premiado artista plástico gaúcho. Ao todo, são 134 obras, sendo 49 pinturas, 40 desenhos, 32 gravuras e 10 matrizes.

No início da exposição, há logo o impacto dos grandiosos quadros de “No Vento e na Terra” (1992) – última série concluída pelo artista. Tudo é sombrio – como havia de ser, pois essa é marca forte nas obras de Iberê. No primeiro plano, o homem deitado no chão, de bruços, em meio a uma atmosfera erma, possivelmente sem vida, poderia ser visto como uma pincelada de desespero. Entretanto, numa outra leitura da obra, é a coragem do pintor em encarar a presença da morte de frente que fica evidente. “Essa foi uma fase crepuscular da vida dele. Iberê estava doente, então, ele estava num enfrentamento da finitude da vida. De certa maneira, esse é um olhar também para a vida, a partir dessa finitude e desse desfalecimento do corpo”, considera o curador da mostra, Luiz Camillo Osório.

As obras subsequentes, de “Tudo Te É Falso e Inútil”, pintadas dois anos antes de sua morte, trazem o temperamento trágico do artista. O sujeito, despido, tem o olhar perdido, como se esperasse por algo ou por nada.

 

“No Vento e na Terra” - O quadro traz, ao fundo, uma bicicleta, sendo essa uma grande marca nos trabalhos de Iberê Camargo. Foto: Flávio Tavares
 

A retrospectiva

Após denso mergulho no fim da carreira de Iberê, a exposição induz o visitante a voltar algumas décadas e entrar na retrospectiva linear. Não há quadros dos anos 40, quando o artista iniciou a carreira. Os trabalhos exibidos mais antigos são da série “Natureza Morta”, de meados dos anos 50, época em que surgem também os carretéis. “O carretel é a referência iconográfica do Iberê, como as bandeirinhas são do (Alfredo) Volpi”, destaca Osório. Certa vez, o próprio Iberê explicou que os carretéis estão “impregnados de lembranças” de sua infância.

Os carretéis marcam ainda a entrada do pintor na arte abstrata. Por sinal, foi com o abstrato de “Fiada de Carretéis”, em 1961, que ele ganhou o prêmio de melhor pintor nacional na 6ª Bienal de São Paulo. Um ano depois, a série foi exibida na Bienal de Veneza. “Este é o momento do reconhecimento de uma trajetória, que deixa de ser formativa e, agora, passa a ser a de um artista maduro”, pontua o curador.


Obras expressam o drama que o artista trazia na alma

A partir da década de 1960, a fina camada de tinta, vista outrora nos quadros de Iberê Camargo, dão lugar a uma pintura bem mais matérica. Na tela “Desenvolvimento da Forma” (1964), por exemplo, o relevo da tinta é tangível. “Ele pintava (naquela época) com espátula, como se abrisse essa massa de tinta preta para deixar a luz e a cor aparecerem”, afirma Osório.

Tons um pouco mais claros, surgem somente no fim dos anos 60 e durante a década de 70. Contudo, o que se mantém, de uma forma geral, é uma palheta mais escura. A ausência de cores proposital era a forma de expressar o drama, que, como dizia Iberê, ele trazia em sua alma.

Paralelamente aos quadros, há a presença de desenhos. Segundo o curador da mostra, essa era a maneira de Iberê treinar. “O desenho é sempre o lugar do exercício. Uma forma de soltar a mão”.

 

O curador Luiz Camilo Osório ao lado da série com a qual Iberê foi premiado na Bienal de SP. Foto: Flávio Tavares/Hoje em Dia
 

“Ciclistas”

A exposição volta a caminhar para os últimos anos de vida de Iberê, com a série “Ciclistas”, na qual a presença figurativa ganha destaque. O trabalho é assinalado também pelas bicicletas – forma encontrada pelo artista de resgatar lembranças da infância.

“Nas últimas telas, é interessante perceber uma espécie de revisitação da obra dele. Aqui, temos o manequim, que é uma figura que ele usa nas pinturas nos anos 80, a bicicleta e o carretel. São figuras que estão olhando para o passado, para estas referências da memória, para o tempo”, define o curador. A série “As Idiotas” fecha o ciclo.

Depois de percorrer pelas obras, o que fica gravado é a realidade dura, obscura, que Iberê tanto fez transparecer. “A minha pintura, sombria, dramática, suja, corresponde à verdade mais profunda que habita no íntimo de uma burguesia que cobre a miséria do dia a dia com o colorido das orgias e da alienação do povo. Não faço mortalha colorida”. Iberê cumpre, mais uma vez, o seu objetivo.

 

“Ciclista”: o quadro compõe uma das séries mais importantes do artista e ficava exposto na sala da casa onde Iberê Camargo morou nos últimos anos de vida. Foto: Flávio Tavares/Hoje em Dia
 

Acervo da Fundação possui mais de 20 mil itens

Apesar de ter nascido em Restinga Seca, interior do Rio Grande do Sul, Iberê Camargo passou a maior parte da trajetória profissional no Rio de Janeiro, onde viveu por 40 anos. Somente em 1982, o gaúcho volta para o estado natal, escolhendo a capital para morar. “Ele viveu em Porto Alegre num lugar mais isolado do centro da cidade. Iberê recebia sempre muito bem alguns amigos e as excursões das escolas que iam visitá-lo. Mas acho que, no interior dele, era essa solidão que era passada para os quadros. Era uma angústia, (ele) era um trágico mesmo”, afirma Eduardo Haesbaert, que foi o impressor e conviveu com Iberê durante os últimos quatro da vida do artista.

De acordo com Haesbaert, que hoje coordena o acervo da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, o pintor tinha o costume de escrever cartas, o que acabou se transformando num numeroso acervo documental. “Ele estava sempre respondendo cartas e mandava fazer uma cópia de cada uma delas para ficarem guardadas como memória. Ele estava construindo um legado para o público. Na fundação, ficam mais de 20 mil itens de documentação”. Parte desse legado, ganhou versão digital e pode ser visto também no CCBB, durante a exposição.

Mesmo doente, sofrendo de um câncer, Iberê não parou de trabalhar. “Era um pintor de ofício. Peguei o período final da vida dele, quando ele já sabia que estava com câncer e sabia que já não tinha mais tempo a perder. Sua produção foi muito intensa”, frisa Haesbaert.

Falecido em 1994, aos 79 anos, Iberê deixou mais de 7 mil obras, entre desenhos, gravuras e pinturas. A maioria foi deixada a Maria Coussairat Camargo, sua esposa, e está na Fundação Iberê Camargo.

Serviço:

Exposição “Iberê Camargo: Um Trágico nos Trópicos”, no Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB (Praça da Liberdade, 450, Funcionários). De 27 de janeiro a 28 de março. Visitas gratuitas de quarta a segunda, das 9 às 21h.

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