Branca de Neve não sofre com a Madrasta Má. É sua própria mãe que tenta matá-la três vezes. Rapunzel, grávida, é abandonada no deserto e demora anos para encontrar seu príncipe, que fica cego ao escalar a torre pela última vez. Cinderela não tem fada madrinha, perde um sapato dourado e verá suas irmãs cortarem partes dos próprios pés para tentar enganar o príncipe.
Ditos assim, parecem até contos de terror. Mas eles não são adaptações recentes, destas que o cinema tem produzido para os adultos. Essas são as versões originalmente escritas pelos Irmãos Grimm há 200 anos e que a Cosac Naify traz, pela primeira vez ao Brasil, em Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos com a crueldade, dureza e ironia dos mestres alemães.
A edição comemorativa tem 156 contos em dois volumes, um lançado em dezembro de 1812 e o outro, três anos depois. O segundo tomo mantém, inclusive, o prefácio original dos irmãos com a repercussão do volume anterior. O texto antigo, que não perdeu o vigor, recebeu um cuidadoso tratamento gráfico, com páginas fluorescentes e xilogravuras do cordelista pernambucano J. Borges. Uma escolha que está alinhada com a obra dos Grimm, que coletaram 240 contos populares alemães ao longo de sua produção. "Os Grimm tiveram a preocupação de manter a oralidade, até com repetições de frases e trechos. Isso foi importante para conservar o registro do contar", diz Isabel Coelho, diretora do núcleo infanto juvenil da Cosac Naify.
Na época da coleta, o território germânico era dominado pelos franceses. A situação, claro, não agradava aos alemães. Por isso, o trabalho dos Grimms de recolhimento de histórias e palavras - que viria a constituir o grande dicionário da língua alemã com 32 volumes - fazia parte de um plano maior. "Uma motivação fundamental para a coletânea dos Grimm foi contribuir para a consolidação da identidade cultural dos alemães e, mais além, para a unificação política", atesta Marcus Mazzari, professor do departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. O ano de publicação da primeira coletânea coincidiu com o fim da dominação napoleônica na Alemanha.
O que não imaginavam era o sucesso que fariam entre as crianças, o que fez Wilhelm suavizar as histórias nas versões seguintes. Fato é que a primeira versão é um retrato mais próximo de uma época em que fome e miséria castigavam a população e injetá-la de sutilezas é negar uma parte da história. Ou nas palavras dos Grimms: "Nada pode nos defender melhor do que a própria natureza, que deixa crescer flores e folhas com determinadas cores e formas; aquele para quem elas não são salutares, pode facilmente passar por elas ignorando-as; mas não pode exigir que elas sejam tingidas de outra cor ou que tenham outra forma".
Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos
Jacob e Wilhelm Grimm.
Ilustrações: J. Borges.
Tradução: Christine Röhrig.
Cosac Naify, R$ 99.
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