(Arquivo Pessoal / Raquel Alves)
Crônicas, fotos, simplicidade e saudade. Esses são alguns dos itens físicos e afetivos do acervo pessoal que o escritor, teólogo, psicanalista e educador Rubem Alves deixou, segundo a filha caçula dele, Raquel Alves. De Campinas (SP), onde vive, a arquiteta concedeu entrevista ao Hoje em Dia, e diz que assumiu de vez a direção do instituto que leva o nome do pai dela. O local será adaptado para abrir as portas ao grande público, a exemplo de outras instituições mundo afora que perpetuam a mensagem de escritores.
Mineiro de Boa Esperança, Rubem Alves morreu há seis meses, aos 80 anos, em um hospital em Campinas em decorrência de falência múltipla dos órgãos. Raquel diz que os textos inéditos deixados pelo pai ainda estão sendo analisados. Porém, ela acredita que o material contém escritos pré-existentes, que foram remanejados por Rubem. A família planeja outras publicações, ainda em sigilo.
Raquel lembra que o pai começou a escrever as histórias infantis inspirado nas dores que ela sofria. “Nasci com lábio leporino. Ele escrevia para me acalentar. ‘A Operação de Lili’, ele leu para mim quando eu estava num pré-cirúrgico. Ele via que eu estava com medo e a história brotava”. “A Menina e o Pássaro Encantado’ é outro livro feito para mim, pois ele viajava muito. Como fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos, antes de eu nascer, meu pai já tinha muito vínculo por lá e já era respeitado e reconhecido, por isso, era sempre convidado para dar cursos”, lembra.
Raquel tinha 6 anos e chorava muito reclamando a ausência do pai. “Diante da ligação que tínhamos, nasceu esse livro, para que ele me explicasse a saudade”. “Em 1959, me casei e vieram os filhos Sérgio e Marcos. Em 1975, nasceu minha filha Raquel. Inventando estórias para ela, descobri que eu podia escrever estórias para crianças”, declarou o escritor mineiro, certa vez. A partir dessas temáticas de amor e simplicidade é que os livros de Rubem foram conquistando leitores mundo afora. Até agora, estima-se que o escritor tenha vendido mais de 3 milhões de exemplares, dos 138 títulos publicados. Os livros dele estão em 12 países.
“Simplicidade. Essa é a espinha-dorsal de todo legado que ele deixou. Meu pai escrevia aquilo que o coração pedia”, diz Raquel. Em um dos mais conhecidos textos de Rubem, o escritor sintetiza esta "simplicidade" diante da vida pela fala do garoto de uma escola, reproduzida para para ele, pela professora do menino: “Mas a melhor resposta à pergunta ‘quem é Rubem Alves?’ foi um menininho que deu: ‘Rubem Alves é um homem que gosta de ipês amarelos’”.
Veja a entrevista na íntegra:
A vida já se acalmou depois da morte do seu pai?
Uma parte, sim. Mas a parte sentimental ainda não. Ainda preciso aprender a viver o dia a dia sem ele. Segunda-feira (19/01) fez seis meses da morte dele. A partida do meu pai foi uma transformação aqui no Instituto Rubem Alves. Ainda contávamos com a ajuda dele. A gente tem material para trabalhar, só que quando ele faleceu, tudo mudou. O Instituto não é mais a representação dele. Agora, é a personificação, a continuidade dele.
Você largou definitivamente a arquitetura para cuidar do Instituto?
Definitivamente é muito forte. Eu, agora, estou aqui. Foi um processo natural. Antes de ele falecer, eu dividia as duas atividades, a presidência com a arquitetura.
Você tem mais dois irmãos homens mais velhos, com outras profissões, mas o fato de você ter assumido o instituto sozinha denota alguma relação específica sua com a obra de Rubem Alves?
Tem toda relação. Foi o meu nascimento que, vamos dizer, fez a transformação do meu pai. A partir do meu nascimento que ele começou a escrever para valer. Até então ele escrevia de forma acadêmica. Então ele começou a escrever aquilo que dizia respeito ao coração. E quando alguém escreve assim, muda a linguagem. Esta foi a grande transformação.
O Drummond também tinha uma ligação afetiva inexplicável com a filha dele…
E eu uma ligação inexplicável com meu pai também.
Seus irmãos nunca ficaram com um pouco enciumados com a relação sua com seu pai?
(Risos). Não, não… Quando eu nasci, meus irmãos já eram adolescentes, 14 e 16 anos. Já era uma outra natureza. A atenção que eu tinha era específica para a minha idade, e eles tinham a atenção deles.
E você pegou um pai já maduro…
Claro. Isso faz toda a diferença. Ele já tinha 42 anos. Eu nasci com lábio leporino. Tive os meus desafios de cirurgia. Sei lá quantas… O meu pai começou a escrever as histórias infantis inspirado nas minhas dores de criança. Ele escrevia para me acalentar. “A Operação de Lili”, ele leu para mim quando eu estava num pré-cirúrgico. Ele via que eu estava com medo e a história brotava…
É bonito isso…
É bonito, sim. “A Menina e o Pássaro Encantado” é outro livro que nasceu assim. Ele viajava muito. Ele fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos, antes de eu nascer, por isso, ele já tinha muito vínculo por lá. Quando eu nasci, ele já era respeitado e reconhecido naquele meio e, por isso, era sempre convidado para dar cursos. Ele passava dois três meses lá como professor convidado. Eu tinha 6, 7 anos, imagine? Eu chorava muito diante de toda a ligação que a gente tinha. Por isso, nasceu este livro para que ele me explicasse a saudade.
E estas histórias foram conquistando milhões de pessoas mundo afora.
Eu não gosto de falar que ele partiu, falo que ele “se encantou”. A gente vai ter saudade eterna, mas as histórias dele ainda estão aqui. Agora não sou apenas eu aquela menina, mas todos leitores que o amam. O status de “a menina” deste livro, eu reparto com o mundo inteiro.
São quantos títulos?
Foram 138 livros. Mas, agora, disponíveis no mercado, são 90. Ele vendeu mais de 3 milhões de livros.
Ele deixou algum livro inédito?
Isso ainda a gente não sabe responder. Ficou um material no computador dele, que ele dizia que era inédito, mas o nosso palpite é seja algum remanejamento. São crônicas. Esse material ainda está em análise.
É verdade que ele estava escrevendo uma biografia?
Havia um plano para outra pessoa escrever, mas a editora cortou.
E o acervo do seu pai?
Vai ficar aqui no Instituto. A gente está aqui para consolidar a história dele. Livros, gravações e objetos pessoais estão aqui. O que a gente tirou do apartamento e já está tudo aqui, incluindo os livros da biblioteca particular dele, com autores que influenciaram o pensamento dele, os poetas que ele amava. Ele já tinha feito uma triagem deste livros. Sobrou somente aquilo que era essencial para o coração dele.
O seu pai tinha muita simplicidade para escrever, mas ele chegou a ser criticado por isso, como se fosse uma literatura menor.
Esta é a palavra-chave: a simplicidade. Esta é a espinha-dorsal de todo legado que ele deixou, do pensamento, da linguagem e do humanismo dele. É o que eu falei, ele escrevia aquilo que o coração dele pedia. Ele não entrava em nenhum “ismo”. Essas pessoas parecem que têm a necessidade de catalogar e ele não tinha estilo. O estilo dele era o do coração. Ele estava preocupado com a essência.
Vocês pretendem abrir o Instituto para visitação, como se fosse um ponto turístico em Campinas?
Nós pretendemos ter visitas para o público, sim, até com oficinas, porém, mais para frente. Pelo menos daqui um ano e meio.
A exemplo da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre?
Isso mesmo. A ideia está sendo lapidada. Ele tinha a preocupação do que iria acontecer com a obra dele. Parece que ele partiu sossegado sabendo que a obra dele iria continuar. Há algumas fotos pessoais que estou guardando para quando o Instituto for aberto ao público.