'Diálogos de Samira', lançamento da editora moderna

"Quero que o mundo inteiro nos escute e veja onde chegamos tentando escapar da guerra”. O desabafo de Abdullah Kurdi, refugiado sírio e sobrevivente de um naufrágio que matou sua esposa e dois filhos na última quarta-feira, ao tentar atravessar da Turquia para a ilha grega de Kos, faz coro ao lamento de quase 3 milhões de refugiados sírios, vítimas da guerra, incluindo Karim.

Personagem central do livro “Diálogos de Samira – Por dentro da guerra síria” (Editora Moderna), Karim vive junto com a família em um campo de refugiados no Líbano e carrega o triste drama de ter perdido o amigo Sayed durante a fuga. Sayed se transformou em shaheed, que em árabe significa “mártir”, assim como o filho de Abdullah Kurdi, o garotinho Aylan, de 3 anos, morto por afogamento, é mais uma vítima das atrocidades do grupo autointitulado “Estado Islâmico”.


Impactante
A imagem do corpo do menino estendido na praia de Ali Hoca, em Bodrum,  na Turquia,  chocou o mundo e  em comoção foi criada a hashtag #naufragiodahumanidade. “A destruição chega à sua porta e agora era ir embora ou morrer”, descreve Karim no livro escrito a quatro mãos pela jornalista, historiadora e escritora Marcia Camargos e por Carla Caruso, escritora e ilustradora.  “O livro é tristemente atual”, afirma Marcia, acrescentando que, quando começou a escrevê-lo, o assunto estava na pauta do dia, mas não tão pungente como agora. Sobre o episódio da morte da família de Abdullah Kurdi, ela resume: “a vida civil foi desmantelada, chega uma hora que  você se joga ao mar e tem alguma chance de sobreviver ou fica esperando pela morte. Essa é uma das piores tragédias humanitárias”.

Marcia, que já viajou para a Síria, conheceu o Líbano, Irã, Egito e durante seis meses morou no Cairo, convidou Carla Caruso para escrever um livro que aproximasse leitores jovens do mundo árabe.  Na trama, Marcia escreve as falas de Karim, e Carla, de Samira, uma menina paulista, ingênua, de classe média e que se solidariza com o drama do amigo sírio e trocam mensagens por e-mail e por cartas. A narrativa revela o cotidiano de Samira no Brasil e de Karim no Líbano. As autoras vão criando dinâmicas intertextuais que fazem referência tanto ao universo literário clássico das Mil e uma Noites quanto às divisões do islamismo moderno, entre xiitas, sunitas e alauitas, passando pelo período em que vigorava o extinto Império Turco-Otomano.


Múltiplas facetas
O livro revela também as múltiplas facetas acerca dos envolvidos na guerra, desconstrói estereótipos que associam todo o islã a práticas e crenças fundamentalistas. “Achei interessante tentar destrinchar um pouco dessa história cheia de atores internos e externos, com tantas influências e interesses. A guerra síria é um jogo de xadrez com milhares de estratégias e muda o tempo todo”, desabafa Marcia. Detalhe: o livro contém pequeno dicionário situando o leitor sobre Bashar Al-Assad (presidente sírio) e vários outros termos árabes que ajudam o jovem leitor a entender e se  posicionar, desconstruindo estereótipos. Mesmo depois de pronta,  a publicação foi incrementada por fatos históricos atuais, como a devastação dos sítios arqueológicos de Palmyra, na Síria.


Solidariedade
As autoras mergulharam numa extensa pesquisa, tanto histórica do conflito, que se desenrola desde 2011, até conversas com refugiados sírios que moram no Brasil, abrigados em mesquita do Brás e em Guarulhos. Marcia se solidarizou tanto com o drama dos refugiados, que durante seis meses abrigou um jornalista sírio em sua casa, em São Paulo. “Foi o mínimo que pude fazer. É triste saber que sua casa, seu quarteirão, seu bairro foram bombardeados, viraram escombros. Não existe perspectiva de voltar para casa”.

Marcia e Carla nos dão uma lição de cidadania. “Existe é o homem humano. Travessia”, cita na epígrafe, se referindo ao livro “Grande Sertão Veredas” de Guimarães Rosa.