Estreia: “Esse Viver Ninguém me Tira”, documentário de Caco Ciocler sobre a mulher de Guimarães Rosa

Paulo Henrique Silva/Hoje em Dia
25/08/2014 às 08:05.
Atualizado em 18/11/2021 às 03:55
 (Arquivo)

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Mulher do escritor mineiro Guimarães Rosa, Aracy Moebius de Carvalho tem seu nome escrito no Jardim dos Justos Entre as Nações, no Museu do Holocausto, em Israel. Ao lado do autor de “Grande Sertão: Veredas”, cônsul adjunto brasileiro em Hamburgo durante a ascensão nazista na Alemanha, ela ajudou dezenas de judeus a ganhar visto de entrada no Brasil, desafiando circular do governo de Getúlio Vargas, que restringia a vinda dos seguidores do Torá.

Pouco conhecida, essa história é o carro-chefe do documentário “Esse Viver Ninguém me Tira”, que marca a estreia de Caco Ciocler na direção. Uma grande dificuldade – os problemas com as filhas do primeiro casamento de Rosa, que vetam o uso de imagens e trechos de livros do autor sem a autorização delas – acabou reforçando o desejo dos realizadores de “tirar Aracy da sombra de Guimarães”, nas palavras do ator, que foi convidado para o projeto pela pesquisadora e roteirista Alessandra Paiva.

“Esse problema surgiu inicialmente no ‘Tubarão’ de (Steven) Spielberg. Naquele filme (lançado em 1975), não se podia mostrar o tubarão (porque a reprodução mecânica não era verossímil) e víamos apenas a barbatana dele, o que acabou sendo genial. Nosso desafio foi fazer um filme sobre a Aracy sem falar de Guimarães Rosa, em que ela reinasse como protagonista absoluta”, registra Ciocler, ressaltando que o primeiro corte do documentário não tinha uma imagem sequer do escritor.

Apoiado pelo outro lado da família de Aracy (o filho e advogado Eduardo Tess, fruto da relação com o alemão JohaLudwig Tess), Ciocler mudou de ideia e adicionou três fotos da heroína paranaense com seu segundo companheiro. “A gente entende que não tem como recortar uma foto ao meio para Guimarães não aparecer”, assinala. Só lamenta não poder usar a correspondência trocada pelo casal. “Mesmo quando é ela quem escreve, é complicado determinar (os direitos), porque a carta pode ser também de quem recebe”.

Embora não tenha recebido nenhum prêmio no recente 42º Festival de Cinema de Gramado, onde foi exibido pela primeira vez, no início do mês, o diretor ficou satisfeito com o resultado: “Conseguimos deixar Aracy por 80 minutos quase independentemente do Guimarães Rosa”. Apesar de ter sido a contragosto, a ausência do escritor é uma maneira de evitar o mesmo destino de “Outro Sertão”, produção que registra a passagem de Rosa pela Alemanha e que permanece inédito em circuito comercial.

Filme busca entender o que levou Aracy a desafiar Hitler

Judeu, Caco Ciocler confessa que não sabia nada sobre o “anjo de Hamburgo” antes de ser procurado pela roteirista Alessandra Paiva. “Já existia um roteiro pronto, mas comecei um novo processo de aproximação a partir do meu ponto de vista, o que me levou a optar por uma narração em primeira pessoa. Muita coisa veio abaixo durante a feitura. E outras, que não estavam previstas, entraram. Aconteceu de o entrevistado soltar uma pérola pouco depois de desligarmos a câmera”.

Entre as múltiplas possibilidades que tinha para seguir, Ciocler optou por aquela “que mais lhe interessava como judeu”, que era entender o que a levou a desafiar ordens superiores e a tirar os judeus da Alemanha. “E sobre isso não existia praticamente nenhum documento. Para ser sincero, havia uma carta em que ela consultava um amigo policial sobre o que estava acontecendo, mas era muito vaga. Não ajudaria mais que o filme já tinha”.

Suástica

Um detalhe nas agendas de Aracy, que faleceu em 2011, de causas naturais, aos 102 anos, chamou a atenção da roteirista: “A suástica, símbolo nazista, aparecia em todos os meses da agenda. O que significava aquilo? Segundo pesquisadores, era a menstruação dela. Eu, como mulher, e não como judia, imagino que ligar o símbolo ao sangue era uma forma de falar da loucura que é menstruar”, analisa Alessandra, que teve acesso a mais de cinco mil documentos, guardados no Instituto de Estudos Brasileiros, em São Paulo.

Ela lembra que entre eles há cartões postais enviados ao Brasil, no início da década de 30, com reverências ao símbolos nazista. “Naquele momento, ela tinha acabado de chegar à Alemanha e (Adolf) Hitler tinha assumido o poder. Os alemães estavam apaixonados pelo fuhrer”.

Alessandra defende a participação de Ciocler como personagem, dizendo que, “fazer um filme é, antes de tudo, falar da gente mesmo”, realizando grandes descobertas pessoais a partir da história de Aracy.

“Como não conseguimos essa Aracy heroína nos documentos, fui atrás de olhares de encantamentos. Foi uma reconstrução imagética, sensorial, a partir do que diziam, gerando pequenas faíscas do que teria sido”, afirma Ciocler, que concordou com um jornalista que afirmou não enxergar, nas fotos exibidas no filme, a beleza que um entrevistado atrelava à mulher de Rosa. “Também não vi nenhuma foto dessa. Pelo menos, para o meu gosto”, salienta.

Alessandra, por sua vez, reafirma que Aracy era uma mulher glamourosa, recorrendo a comentários da época, com elogios do tipo “ela tinha mais curvas que o Danúbio (rio da Alemanha)”. Em suas cartas, Rosa se mostrava um “Joãozinho babão”, como define a roteirista, destacando “os peitinhos e pés” de Aracy. “É uma pena não poder mostrar (as cartas) porque seriam da intimidade do casal. Se é uma fofoca, ela é de alto nível”, pondera.

Ditadura

A atuação de Aracy não ficou restrita à Segunda Guerra Mundial. Durante a ditadura militar brasileira, ela escondeu o músico Geraldo Vandré na casa dela. No Instituto de Estudos Brasileiros, estão duas cartas do compositor de “Pra Dizer que não Falei das Flores”, em que ele agradece o tempo que permaneceu clandestinamente na casa da viúva de Rosa.

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