(Divulgação)
Para o diretor Gustavo Galvão, vivemos hoje numa sociedade extremamente utilitarista e egocêntrica. “Quando se vive num mundo assim, enxergar o outro passa a ser algo frívolo”, afirma o realizador, que leva essa questão para o seu segundo longa-metragem, “Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa”, com estreia nesta quinta-feira (14) no Cine Belas Artes.
Filmado no interior de Minas Gerais, é um road movie sobre dois companheiros de estrada que não sabem que rumo tomar em relação ao seu futuro. “Essa indefinição me atacou em determinado momento. Eu reagi e fui para Madri, aos 26 anos, quando larguei a profissão de jornalista para estudar cinema”, assinala Galvão, que tomou emprestado uma frase do poema-manifesto de Allen Ginsberg, escritor americano da geração beatnik.
Em cena, Pedro (Vinícius Ferreira), que fugiu de casa, pegou a estrada e não sabe para onde ir. Lucas (Marat Descartes) também não, mas a estrada é seu palco. Eles têm pouco mais de 30 anos e levam só a roupa do corpo. Após se conhecerem numa lanchonete de beira de estrada, em Minas, percorrem o Brasil em busca de uma dose violenta de qualquer coisa.
O filme é uma homenagem à geração beatnik?
Nem sabia o que ia fazer da minha vida ainda quando tive a ideia para uma cena, aos 18 anos. Um ano antes descobri a literatura beatnik e ela causou um impacto enorme em mim. Porém, só fui rodar esse filme em 2012, quase 20 anos depois. A influência beatnik acabou sendo diluída por outras referências, como o cinema marginal. a escrita do roteiro foi claramente dividida em duas etapas: a primeira vai de 1994 a 2007, um período em que procurava entender o que aquela cena inicial queria dizer para mim; e a segunda vai de 2007 a 2012, quando efetivamente me dediquei ao roteiro, agregando à história dos dois protagonistas elementos da minha própria vivência e de coisas que observava na minha geração. Por tudo isso, não diria que o filme é uma homenagem à geração beatnik, e sim uma releitura bem pessoal, transportada para o Brasil de hoje. A literatura beatnik foi, acima de tudo, uma inspiração. Para ser artista e para ser bastante franco ao abordar temas como sexo, drogas, religião e a vida cotidiana.
Por que fazer um road movie?
O que mais me fascina nos filmes de estrada é a possibilidade de viajar com personagens desenraizados. Acompanhar esses tipos sem agenda, sem smartphones nem tablets. Não-rastreáveis, mas que deixam pistas e precisam vivenciar coisas, qualquer coisa, com urgência. O que me incomoda nos filmes de estrada é a regra tácita de que esses personagens precisam encontrar a resposta para suas angústias no final da jornada, sendo que a vida não é necessariamente assim. Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa procura outras possibilidades no que toca à transformação do personagens. E assim, acabamos repensando outra regra: a relação do personagem com o espaço. Se nos road movies a paisagem costuma ser uma inspiração para a mudança, aqui o foco está sempre nos personagens, sendo que um deles, Pedro, sente-se incomodado pelo ambiente. Por isso é raro vermos de forma ampla os locais onde eles circulam. Não importa quanto eles rodam, eles continuam voltados para o próprio umbigo. Tanto Pedro (Vinícius Ferreira) quanto Lucas (Marat Descartes) precisam de tempo para perceber o mundo ao redor.
Quais ingredientes você buscou a escolher Minas Gerais como destino de seus personagens?
Os personagens são de Brasília. Antes de se conhecerem, eles saem de Brasília e pegam a estrada. Numa situação como essa, só resta duas opções: avançar por Goiás ou Minas Gerais. Eles avançam pelos dois Estados. De qualquer modo, o Cerrado está por todos os lados nessa jornada. É uma paisagem que me interessa registrar: a aridez, as árvores retorcidas e as estradas esburacadas se somam à trilha, que é intensa e quebradiça, para traduzir o estado de ânimo de pelo menos um desses personagens, o introspectivo Pedro. Depois de vencer o cerrado, ele chega a Ouro Preto, cidade barroca por excelência, que representa o oposto absoluto da cartesiana e modernista Brasília. Esse contraste é intencional. Na fuga de Brasília e de tudo que a cidade significa para ele, ir a Ouro Preto acaba sendo uma meta inconsciente. Dessa forma, o filme faz a ponte entre duas cidades importantes na formação do Brasil. Em um filme que trata justamente de temas brasileiros, essa ponte entre o passado e o presente tem um simbolismo forte.