O ano de 1972 foi um marco na carreira do músico mineiro Lô Borges. Aos 20 anos, ele lançava dois álbuns: o emblemático “Clube da Esquina”, ao lado de Milton Nascimento, e seu primeiro disco solo, homônimo, popularmente conhecido como o “disco do tênis”. Hoje, 45 anos depois, com uma profícua obra e mais de 60 canções compostas nos anos 2000, mostrando que ele continua ativo a despeito do sucesso conquistado no início da carreira, Lô decidiu colocar o “intocável” tênis na roda.
Ele revisita o disco que nunca havia tocado ao vivo, nesta sexta-feira, às 21h, no palco do Grande Teatro do Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1046). Em entrevista ao Hoje em Dia, o artista fala sobre seu processo de composição, crise econômica e a dificuldade de músicos novos ganharem o mercado.
O “disco do tênis” completa 45 anos com esse show comemorativo. Como foi revisitar essa obra? E qual a expectativa, já que esse é um trabalho que nunca foi executado ao vivo?
Essa história do “disco do tênis” virar show se consolidou em 2016, a partir de um encontro com o músico e compositor, aqui de Belo Horizonte, Pablo Castro. Ele me fez uma visita e tocou todas as músicas do disco na íntegra. E me senti entusiasmado. Há dez anos eu recebi uma proposta da Virada Cultural de São Paulo para fazer a reconstrução desse trabalho no Teatro Municipal. Eu declinei o convite por saber que é um disco muito cheio de detalhes. Uma coisa toda costurada, não seria um trabalho fácil de ser feito se não tivesse tempo. Em 2016 chegou o momento. Quando encontrei com o Pablo pensei que já estava na hora de colocar esse tênis na roda. Uma das especialidades dele é reconstituir discos. Falei para ele começar a ensaiar com a banda que o acompanha, como uma aposta, e me mostrar. Fiquei surpreso no primeiro ensaio que fui. Fiquei arrepiado, delirando, achando que estava no ano de 1972. Vi tudo rigorosamente igual ao que a gente construiu lá atrás. Até um solo que eu erro uma nota no disco, o guitarrista vai e erra a mesma nota. Aí eu abracei, e deixou de ser uma proposta e passou a ser um projeto mesmo.
Você já realizou esse show em São Paulo, agora em BH. Pretende levar para outras cidades ou registrá-lo em DVD?
A gente sempre pensa nisso. Ainda mais pelo fato de ser um álbum histórico, do ano mais importante da minha carreira. Um ano em que fiz o disco “Clube da Esquina” também. Um momento iluminado na minha carreira de compositor. Em 1972, nove canções para o “Clube da Esquina” e 15 para o “disco do tênis”. Aos 20 anos de idade já estava com 23 músicas gravadas. Algo incomum. A ideia é continuar percorrendo os convites que a gente vem recebendo do Brasil inteiro para fazer shows, até fora do Brasil. E fazer o registro em DVD. É um caminho natural em um projeto tão importante para mim como esse. Revisitar um disco que nunca teve uma música dele em nenhum set list de shows meus nessas quatro décadas de carreira. Um disco que ficou ali, só ele, e não se misturou com meu repertório. É uma curiosidade. Agora estamos fazendo “o tênis” na íntegra. É o momento dele.
Do ano 2000 até 2013 você lançou vários discos de inéditas. Você tem uma rotina de criação, ou só compõe quando tem um projeto em mente?
Eu sou um cara que gosta de compor. No início da minha carreira era aquele cara que estava sempre compondo com um violão na mão. E quando encontrava com o piano estava tentando compor. Gosto de debruçar em cima de um instrumento, ter uma ideia e começar a criar. Sou um musicista, não sou um letrista, apesar de ter umas cinco ou seis letras minhas no “disco do tênis”. Mas normalmente eu parto do instrumento e faço sequências harmônicas e entrego para algum parceiro fazer a letra. De 2003 a 2013 eu gravei quatro discos e compus mais de 60 músicas. O que considero incomum para um cara da minha idade, com pouco mais de 60 anos. Tive um restart na composição no início dos anos 2000. Uma vontade de voltar àquele tempo que eu compunha todo dia, toda hora. Fiz isso até 2014. Agora estou atravessando uma fase de muitos shows, viajando muito. Não tem me sobrado muito tempo para compor, mas estou com saudade, porque depois dessa arrancada que eu dei, já tem uns dois anos que venho fazendo duas músicas por ano, mas por falta de tempo e não de vontade.
Como você percebe a receptividade do público para os discos de inéditas, frente a força dos clássicos?
Acho que o público gosta do que faço independentemente se for o “disco do tênis” ou o trabalho que contempla toda minha carreira. Uma coisa curiosa que acontece no show, principalmente no “disco do tênis”, é que a juventude está interessada. Pessoas mais novas. Até na minha banda tem muita gente nova, com pouco mais de 20 anos. A garotada misturada com o público que conquistei ao longo de quatro décadas.
O disco “Clube da Esquina” também completa 45 anos. Como vê a renovação do público que gosta desse movimento musical? O que confere atemporalidade às canções?
Isso é a coisa mais maravilhosa que pode acontecer. Perceber que o que fizemos no passado desperta coisas legais nas pessoas que estão vivendo a adolescência hoje. Fiz o “Clube da Esquina” e o “disco do tênis” quando tinha 20 anos. Hoje as pessoas que têm essa idade estão interessadas nesses trabalhos. Isso significa que o que fizemos foi uma coisa muito inspirada. Muito fora do padrão de querer entrar na mídia, ou fazer música para se dar bem, para ficar famoso ou ganhar dinheiro. Não era essa a nossa intenção, então nossa música veio cheia de verdade e inspiração. Cheia de ideologias de um mundo melhor e mais legal. Isso atravessa gerações e pega as pessoas no tempo que for. Costumo dizer que há 30 anos eu dei entrevista falando dos 10 anos do “Clube da Esquina”, depois falando dos 20, dos 30 e dos 40 anos. Acho que daqui pra frente vai continuar acontecendo isso. O “Clube da Esquina” é um álbum que entrou para a eternidade. Ele sempre vai passar de geração para geração. De pai para filho. De avô para neto. Percebo isso nos shows. É uma salada de gerações.
No início da parceria com o Samuel Rosa você achou que essa dobradinha iria dar tão certo?
Foi muito legal ter encontrado com o Samuel. Gravei uma música do Skank na década de 90. Foi quando o conheci. A partir desse encontro que surgiu a ideia de fazer alguma coisa juntos. Montamos um show que foi lançado em 2000. Um trabalho mais difícil do que fizemos ano passado (o DVD “Samuel Rosa & Lô Borges – Ao Vivo no Cine Theatro Brasil”). Porque esse recente tinha canções do Skank, que lá em 2000, no nosso primeiro encontro, não existiam, como o álbum “Cosmotron”. Do disco “Siderado” até hoje, a banda mudou um pouco o estilo ska ao longo do tempo. Então, quando nos juntamos para fazer o DVD ficou muito mais interessante do que se tivéssemos feito na época que ele estava lançando os primeiros álbuns.
Há algum movimento musical que te interesse, ou que te chame atenção atualmente?
A música brasileira é muito rica, plural e diversificada. Ao longo desse anos venho acompanhando o surgimento de vários artistas, compositores e trabalhos interessantes. A música brasileira sempre se renova. O que acho um pouco preocupante é que essa renovação não se dá na mídia. No camarim dos meus shows recebo muitos CD’s. Tanta coisa legal de pessoas talentosas, que você escuta e acha bacana, mas depois pensa que essa galera está igual Dom Quixote de la Mancha brigando contra moinhos. Porque para elas atingirem a mídia elas terão que entrar no que a mídia está querendo hoje, que é o sertanejo, o axé, e essas coisas. Nada contra essas vertentes. Estou dizendo que a porta de entrada da mídia é muito estreita, ela não é aberta para todos os estilos.
Como é a sua relação musical com seu filho Luca? Apresenta sons para ele? Há uma troca?
O Luca é uma figura. Ele está com 18 anos. Quando ele tinha dez, dei de presente uma guitarra e um violão. Ele toca muita coisa, inclusive minhas também. Mas o foco dele na música é totalmente diferente do Clube da Esquina. Totalmente diferente do pai dele. Ele é um cara mais ligado em rap. Fico na maior felicidade de ver um cara assim: filho de um compositor do Clube da Esquina, e a música que mais interessa a ele é o rap. Acho que essa diferenciação dele sai da obviedade. Às vezes quando ele vai em uma festa o pessoal diz: “você é filho do Lô Borges, então tem que tocar alguma coisa do pai”. Ele pega o violão e toca umas três ou quatro para não passar vergonha. Mas o negócio dele é o movimento rap mesmo.
Como a crise vem afetando a produção e a circulação de shows?
Ela muda um pouco. O número de shows acaba caindo. É normal porque a economia fica desaquecida, e o público não tem dinheiro para comprar ingresso. Quando o país está em recessão uma das primeiras coisas que as pessoas cortam é cultura, arte e diversão. Mas isso não tem me afetado tanto. Não posso reclamar porque tenho trabalhado. Os shows em geral vêm diminuindo, não de uma maneira violenta.
Na sua avaliação qual o momento ideal para pensar em um novo disco? Tem músicas inéditas na gaveta ou algum conceito em mente?
Não tenho tido tempo para compor. Mas estou tendo umas ideias. Não sei se vai ser o caso de fazer um CD. Pois assim como o vinil acabou e só agora está voltando, o CD está acabando também. As pessoas agora vão lançando singles nas redes sociais e no YouTube. Sei que estou a fim de produzir música. Não sei se vou caminhar para um CD de inéditas, como sempre fiz, ou caminhar para um número de canções para veicular nas redes sociais.