Hippie, jovem e no sufoco: Lô Borges relembra os bastidores da gravação do 'disco do tênis'

Lucas Buzatti
lbuzatti@hojeemdia.com.br
22/09/2017 às 19:41.
Atualizado em 15/11/2021 às 10:41
 (Arquivo pessoal)

(Arquivo pessoal)

Lucas Prates 

Lô Borges revisita as 15 faixas do 'disco do tênis' no sábado, no Grande Teatro do Palácio das Artes

O ano de 1972 foi marcante para Lô Borges. Aos 19, o músico mineiro, que havia acabado de gravar “Clube da Esquina” com Milton Nascimento, foi convidado para lançar seu primeiro álbum solo, conhecido como o ‘disco do tênis’. O trabalho foi revisitado por Lô quase 45 anos depois, num show apresentado pela primeira vez em janeiro deste ano, em São Paulo – e que retorna a Belo Horizonte neste sábado (30), no Palácio das Artes. Em entrevista ao Hoje em Dia, Lô Borges relembrou os bastidores da gravação do ‘disco do tênis’, que o projetou a uma intensa busca pelo autoconhecimento.

O 'disco do tênis' veio no mesmo ano em que você e Milton gravaram "Clube da Esquina". Como foi isso?

Quando eu tinha 18 para 19 anos, o Milton me convidou para morar no Rio de Janeiro e gravar um disco chamado "Clube da Esquina", que homenageava a esquina em que eu ficava tocando violão em Santa Tereza, com meus amigos de bairro. Antes do Rio, em 1971, moramos numa praia paradisíaca chamada Mar Azul, em Piratininga. Ali, eu tive um tempo interessante para compor as músicas do "Clube da Esquina", de forma relaxada. Ficamos entre seis meses e um ano fazendo as músicas. A base instrumental era o Som Imaginário, banda que acompanhava o Milton, além do Beto Guedes e do Toninho Horta. O Beto Guedes foi quase uma imposição minha. Falei com o Milton: 'só vou se eu puder levar o Beto. Porque eu vou chegar no Rio, encontrar seus amigos bossa-novistas, jazzistas, de outra praia musical, e eu sou um beatlemaníaco. Preciso de outro beatlemaníaco ao meu lado, para me entender'. Depois, ainda precisei pedir autorização da minha mãe e convencer ela foi barra pesada. Porque era ditadura militar, ela não queria que eu saísse de perto da família para tentar carreira artística, teve uma grande resistência.

Como foi processo de gravação de "Clube da Esquina"?

Foi super criativo, todo mundo participava. Eu era iniciante, estava dando meus primeiros passos. Milton já tinha uma carreira de 10, 15 anos. Era tudo muito pouco tecnológico, tinham só dois canais, tudo valendo. Todo o instrumental num canal, todo o vocal em outro canal. Então, quando você escuta os vocais de "Trem Azul", o Milton e o Beto estavam dentro do estúdio gravando comigo, ao vivo. Era tudo assim. Foi uma experiência incrível, eu tinha apenas 19 anos, nunca tinha nem entrado num estúdio. Nunca fui um músico nem de estúdio nem da noite. Era músico da rua, da esquina. Então, imagina. Quando gravei "Girassol", por exemplo, tinha toda uma orquestra, com arranjo do Eumir Deodato, e eu ali conduzindo no piano, tudo na minha mão. Se eu errasse, derrubava a orquestra e a banda. Eu tinha que acertar, e acertei tudo. Falei: 'vou fazer do jeito que eu faço em casa e vai dar certo'. que eu tinha nascido para aquilo. 

Mas o encontro com Milton veio antes disso, certo?

Bem antes. Quando conheci o Milton, eu tinha dez anos, e ele uns 20. O conheci na escadaria do prédio em que morávamos, o edifício Levy, na avenida Amazonas, no Centro. Fui descendo a escadaria e escutando um violão e um vocalize maravilhoso, que hoje o mundo inteiro ama. Escutei aquilo com dez anos de idade. Quando cheguei no quinto andar, vi um menino pretinho tocando o violão e cantando aquilo. Foi um encontro totalmente mágico. A gente fala que ali ficou selada a nossa amizade por toda a eternidade. Foi uma conexão imediata. Depois, ele se mudou para São Paulo, para investir na carreira. Fez sucessos como "Travessia", foi para os Estados Unidos gravar discos. E eu ali, com meus 14, 15 anos começando a balbuciar as primeiras músicas. Sempre que o Milton voltava a Belo Horizonte, perguntava por mim e diziam: 'o Lô está lá na esquina tocando violão, não sai de lá'. Até que um dia ele foi à esquina e me chamou para ir à casa da minha mãe compor uma música. Aí eu e ele, com dois violões, fizemos nossa primeira parceria, a música "Clube da Esquina", que está no mesmo álbum em que ele gravou outras duas músicas minhas, "Para Lennon e Mc Cartney" e "Alunar". Então, eu tinha 18 anos e três músicas gravadas pelo Milton, sendo uma parceria com ele. Arquivo pessoal 

Os cabeças do Clube da Esquina dividem um ônibus no Rio de Janeiro, onde o disco foi gravado 

"Clube da Esquina" foi um sucesso retumbante, de imediato?

Não, demorou um tempo. A crítica ficou bem dividida. Quem gostou muito, num primeiro momento, foram os cabeludos, os maconheiros. Só esse tipo de galera que abraçou o "Clube da Esquina" logo de cara.

Depois disso, surgiu o convite para gravar o 'disco do tênis'. Como aconteceu?

Quando íamos fazer o "Clube da Esquina", a gravadora não queria que o Milton gravasse um álbum duplo com um cara de 19 anos, totalmente desconhecido. Mas ele bateu o pé e disse: 'se vocês não toparem gravar esse meu disco com Lô Borges, vou fazer com outra gravadora'. Para não perder o Milton, a gravadora acabou cedendo. Foi assim que eu entrei no mundo fonográfico. Mas, quando lançamos o disco, a mesma gravadora que não queria que Milton fizesse um disco com o tal do Lô Borges gostou tanto do resultado que me ofereceu um contrato para fazer outro disco, solo, no mesmo ano. O problema é que eu já tinha gastado toda a minha munição de compositor em "Clube da Esquina". Mas, como todo jovem de 20 anos, eu não falei isso para a gravadora. Simplesmente, assinei o contrato e disse que faria o disco. E aí começou o processo, que foi um sufoco.

Por que?

Porque a gente tinha muito pouco tempo para compor e gravar. Eu compunha uma música de manhã, meu irmão, Márcio Borges, fazia a letra à tarde e, à noite, a gente ia para o estúdio encontrar os músicos. Fazíamos o arranjo e já gravávamos na hora, valendo. No outro dia, quando acordava, não tinha a música que ia gravar à noite. E o processo se repetia. Às vezes, eu mesmo fazia a letra, porque o Márcio trabalhava em agência de publicidade, não sei nem como ele achava tempo para escrever. Então, também acabei me tornando um pouco letrista. O 'disco do tênis' é o que mais tem letras minhas. Não porque eu quisesse fazer, mas porque meu letrista não podia estar comigo sempre. Foram dois meses assim. Chegou uma hora em que eu comecei a estressar e falei com a gravadora que queria ter músicas de piano nesse meu disco. E que teria que ir a BH, porque minha casa no Rio não tinha piano. Daí, passei 20 dias na casa da minha mãe e fiz quatro músicas de piano. Foi um alívio para mim. 

Você acha que essa correria contribuiu para o resultado do álbum?

Claro, foi um disco que apontou para várias direções. Como a cada dia eu acordava diferente, no 'disco do tênis' tem rock, balada, canção, baião, folk. Para onde meu radar apontava, eu saía compondo. Foi muito criativo, apesar de sufocante para um cara tão jovem, que tinha acabado de fazer nove músicas para o "Clube da Esquina". O 'tênis' é um disco muito experimental. Tem faixas de 38 segundos, de quatro minutos. Todo artesanal, tudo criado na hora, sem tempo hábil, mas num processo super coletivo, porque os músicos que estavam me ajudaram bastante. Beto, Toninho e Nelson Ângelo são as bases do 'disco do tênis, mas também tinha Tenório Junior, Novelli, Sirlan, Vermelho, Flávio Venturini. E se eu, que era o autor, não conhecia as músicas, imagina o que foi para eles? Os caras chegavam à noite e perguntavam: 'como é a música de hoje, Lô?'. (risos)Reprodução A icônica capa do 'disco do tênis, cujo clique é assinado pelo fotógrafo Cafi

E o lance da foto da capa, como aconteceu?

A direção da capa é do Ronaldo Bastos e o fotógrafo era o Cafi. No último dia de gravação, aconteceu uma sessão de fotos, que me deixou super mau humorado, porque eu não queria tirar foto. Queria que o disco saísse em papel de pão, só com meu nome. Aí alguém falou: 'ah, fotografa o tênis velho que ele usa o tempo todo'. E eu disse: 'é, fotografa mesmo, que eu vou colocar ele na capa. Não quero meu rosto, vou botar o tênis'. Estava 'puto da vida' com a ditadura e com a correria que foi a gravação. E foi uma ideia maravilhosa, que simboliza para mim um grito de liberdade. 'Estou botando o tênis na capa porque eu vou botar o pé na estrada'. Até hoje eu autografo o 'disco do tênis' assim, 'Com o pé na estrada'. Significava um adeus à gravadora, ao Rio de Janeiro. Não queria mais aquilo. Não queria correr o risco deles me pedirem para gravar outro disco, entendeu? Eu tinha acabado de sair da esquina de BH, eu era um adolescente.

Esse processo louco te deu uma traumatizada?

Deu sim, foi muito estressante. No final, eu não queria mais estar no Rio, estava com saudade da minha vida normal de adolescente em Belo Horizonte, de fumar um com meus amigos na esquina, da minha família. Então, abandonei tudo. Se a gravadora quisesse lançar o disco, eu não me colocaria à disposição para fazer shows de divulgação, atender à imprensa, nada. Eu simplesmente saí igual um jovem rebelde e assustado. Defino o 'disco do tênis' como uma viagem rumo ao desconhecido. Então, voltei ao Rio para pegar minha cota pessoal de divulgação dos discos, peguei um ônibus e fui até Porto Alegre. Pensei: 'quero ir para um lugar bem longe'. Não me pergunte porque eu fui para lá, foi aleatório. Fiquei uns 20 dias em Porto Alegre e virei hippie. Ficava nos parques, nas universidades. Onde tinha uma rodinha de cabeludo eu chegava com meu violão e meus discos. Afinal, eu era aquilo ali: um cabeludo maconheiro. Chegava e falava: 'sou músico, participei de um disco chamado Clube da Esquina'. Ninguém conhecia. Depois disso, assumi a vida hippie e passei quase dois meses numa comunidade em Arembepe, na Bahia. Liguei o foda-se total. 'Só quero fazer música quando eu quiser, não é o mercado que vai me guiar. Vou fazer música relaxado, do meu jeito'.  Continuei compondo, me estruturando, criando maturidade. Só voltei a gravar sete anos depois, o "Via Láctea". Mas não é que eu fiquei sete anos parado. Nesse tempo, me aprimorei, melhorei meu jeito de tocar piano, de compor. 

A contracultura da geração hippie, as drogas e bandas daquele momento te influenciaram?

Totalmente. Isso é visceral. Na sua composição, você reflete o mundo em que vive e o que escuta. Então, tive influências de Crosby, Stills, Nash e Young, Jimi Hendrix, Beatles, Emerson Lake Palmer. E de Milton, Chico Buarque, Caetano, Mutantes. Existia o movimento Power Flower naquele momento, o festival de Woodstock, toda aquela atmosfera. Era estado alterado de consciência o tempo todo. Não eram todos que usavam, mas se tinham dez caras no estúdio, pelo menos três gostavam de tomar  ácido, de fumar maconha. E eu era um deles três. (risos). Cafi/Divulgação

Na foto do encarte do álbum, Lô Borges aparece com cara de poucos amigos, estressado com a gravação

O 'disco do tênis' é bem mais piscodélico que o "Clube da Esquina", né.

Minhas músicas do "Clube da Esquina" eram mais palatáveis. Ali, a gente falava de trem azul, de nuvens ciganas, de girassol da cor do seu cabelo. No 'disco do tênis', o texto é mais denso. Eu falo: 'ando triste porque vivo na rua', 'um estranho silêncio na rua', 'aprendi a ser como um machado'. Isso por conta da ditadura. A gente não podia fazer manifestação, tomava 'dura' só por ser cabeludo. As letras reclamavam muito, porque estávamos vivendo esse momento triste, debaixo da ditadura. É um disco difícil. Hoje, eu gosto do resultado como um todo, mas comecei a gostar há pouco tempo. Tive preguiça dele por muitos anos.

E como veio a ideia de reconstituir o disco?

Há três anos, recebi um convite da Virada Cultural de São Paulo, que me chamou para reconstituir o ‘disco do tênis’. Mas me deram só um mês! Pensei: ‘De novo, não’. Declinei, mas comecei a amadurecer a ideia. Aí aconteceu uma coisa super casual. Vi um comentário do músico mineiro Pablo Castro no Facebook, sobre uma música que toquei em Tóquio, na TV estatal japonesa. Me chamaram para tocar uma música num programa de bossa-nova, quase com repertório exclusivo do Tom Jobim, e fiz “Desafinado”, com um arranjo pouco convencional, que até assustou o maestro, já que eu estava mexendo na obra de um gênio como Tom Jobim. Mas mexi com educação, com lógica. Vi o comentário do Pablo e pensei: ‘Esse cara é esperto, sacou meu arranjo’. E o convidei para ir à minha casa. Pegamos o violão e ele começou a tocar as músicas do ‘disco do tênis’. O cara sabia tudo. Aí saquei que ele era quem, dois anos antes, tinha escrito o prefácio do meu songbook. Conhecia minha obra profundamente, inclusive o ‘disco do tênis’. Contei que queria fazer alguma coisa com aquele repertório’, mas que precisava de alguém que abraçasse isso comigo. Porque é um álbum muito meticuloso, detalhista, não é algo que você reconstitui em um mês, com aquela riqueza de sonoridades, de arranjos. E ele disse: ‘Lô, tenho uma especialidade, que é reconstituir discos. Fiz covers dos Beatles muito tempo e tirava os arranjos de todos os discos’. Então, se eu já tinha a ‘pilha’ de fazer o ‘disco do tênis’, o destino colocou no meu caminho o cara certo, dentro da minha casa. Ele ensaiou várias vezes com a banda e depois me chamou para ver. Fiquei ‘de cara’. Eles recriaram tudo com um capricho, um preciosismo, uma arqueologia musical fantástica. São seis músicos no palco, dois têm idade para ser meus filhos e quatro para ser meus netos. Uma juventude talentosa ali comigo, fazendo exatamente como os caras fizeram em 1972.

Serviço: Lô Borges apresenta o 'disco do tênis'. Abertura: Banda Dônica. Sábado (30), às 21h, no Grande Teatro Palácio das Artes (avenida Afonso Pena, 1.537, Centro). Ingressos: de R$ 35 a R$ 90. 

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