(Maurício Viera)
O soul (expressão musical da cultura negra) segue vivo em Belo Horizonte, entre dançarinos animados, com seus trajes elegantes e sapatos bicolores. E se ele continua forte na capital mineira, é também porque em 1983, Antônio Marçal, mais conhecido como DJ Toninho Black decidiu fazer algo pelo ritmo que tanto amava. Depois de alugar um pequeno espaço e comprar equipamentos de som, ele deu início ao evento que posteriormente ficaria conhecido como Baile da Saudade. Tradicional, a festa celebra este ano 35 anos de atividades interruptas. Em conversa com o Hoje em Dia, Toninho Black relembrou a história do baile e conversou sobre a importância do soul e seu cenário atual na cidade.
No início do mês, o Baile da Saudade comemorou 35 anos de atividades ininterruptas em Belo Horizonte. Como ele surgiu?
Ele foi criado no começo dos anos 80, quando o soul declinava e ia perdendo o espaço para a disco music. Com isso, nós que gostávamos do soul, ficamos sem ter um onde frequentar, sem ter onde curtir a música. Decidi que precisava fazer alguma coisa para que a gente pudesse continuar curtindo esse movimento. Então aluguei um espaço, que era até pequeno, comprei um equipamento modesto, convidei alguns amigos e fizemos uma reunião, que deu origem ao Baile. No início ele era chamava de Baile do Soul e acontecia todo sábado, mas com o tempo começamos a chamá-lo de Baile da Saudade, e passamos a promovê-lo uma vez ao mês.
Por que essa mudança de nome?
Nos anos 70, o soul era moda. Em todo lugar tocava. Saía música todos os dias. Ouvíamos na Rádio Cultura um programa chamado “Ritmos da Noite” e dali tirávamos os nomes das canções e corríamos para Galeria Ouvidor para comprar discos, porque as melhores lojas ficavam lá. Eram tantos lançamentos naquela época, que as pessoas tocavam determinada música por um tempo e depois a encostavam. Às vezes ela ficava um ano sem tocar. Então, alguns lugares que eu frequentava começaram a fazer um “Baile da Saudade” em todo final de ano–é o que hoje o pessoal chama de retrô, né? E tocavam essas músicas. Como na época o soul estava perdendo espaço para a disco e o rock nacional, o Baile do Soul, que acontecia todo final de semana, começou a ter pouco movimento também. Só quem gostava mesmo ia, e a gente sabe que, mesmo quando a coisa é boa, as pessoas gostam de movimento. Então eu falei: “Vou parar, desse jeito não dá, está muito ruim. Vou fazer uma vez por mês só, quem sabe vocês ficam com saudade e voltam a frequentar”. Foi assim que começou o Baile da Saudade, feito no segundo sábado do mês, porque naquela época quase todos os frequentadores eram trabalhadores, pessoas ganhavam salário no quinto dia útil do mês, e o segundo sábado era o mais próximo do dia de pagamento. Hoje já é diferente, hoje o cara chega lá com o cartão de crédito, mesmo que não tenha recebido. Mas naquela época não tinha isso, o brasileiro não tinha crédito.
Quais foram os desafios de produzir o Baile?
Como somos de periferia, a gente era muito perseguido pela polícia. Ela chegava na casa, mandava “Vagabundo para um lado e mulher para o outro”. Não respeitavam muito o que era dos negros. Atualmente é diferente, hoje o cara tem o direito de ir e vir. Maneirou um pouco. O cara pode abrir a sua casa e se estiver com a documentação certinha ele pode trabalhar sem que ninguém vá perturbá-lo.
E as alegrias? Tem alguma edição que tenha de marcado mais?
Teve um evento que fizemos no início de 2004, em Venda Nova, onde era a sede do Baile da Saudade. Nesse dia, celebramos o aniversário do Gerson King Combo, o rei do soul no Brasil. Foi uma edição que ficou marcada, até hoje as pessoas se lembram. Outro importante foi no Forumdoc, acho que no 10º aniversário do festival. Fizemos o baile de fechamento. Foi especial, encheu demais e foi o primeiro de muitas pessoas.
O Baile da Saudade continua vivo mesmo depois de mais de três décadas e você continua tocando o evento sozinho. Qual o segredo para manter esse sucesso?
O Baile da Saudade foi criando raizes e fomos transformando ele em uma família. Você faz um evento e sempre tem alguém que te conhece, alguém para bater um papo. É a mesma coisa que estar entre a família no final de semana. Sabe quando a pessoa recebe o pagamento e vai fazer aquele churrasco em casa? É isso. Essa é a força do Baile. É uma família, todo mundo conhece todo mundo.
Algo mudou ao longo dessas décadas de Baile? O público se renovou?
Graças a Deus o público tem se renovado. Hoje vemos que a maioria é jovem, gente que se interessa muito pela cultura soul. Hoje o Baile é muito melhor. Quando você faz um evento, você tem nele vários tipos de pessoas, de idades diferentes, vários cores e raças. É um todo. O Baile hoje é democrático, não é como antigamente, que era só o povo da periferia e negro.
O Baile tem essa questão bem característica, com alguns frequentadores trajados como nos anos 70 e 80. Qual é a magia que isso leva para a festa?
Isso é muito importante, porque quando o cara vai para o evento bem arrumado, roupa ‘no jeito’, sapato bicolor ou preto mesmo (mas de preferência com a sola de couro para deslizar, porque se for de borracha, ele não vai conseguir dançar, nem fazer nada), a gente vê que ele está valorizando o baile que ele foi frequentar. Tem quem vá só para ver ou ouvir a música também. Mas aquele o dançarino, esse tem que ir arrumado, para poder mostrar para as pessoas como é, para que elas entrem na onda.
O que da essência desses tempos passados, você entende como importante para os dias de hoje?
Acho que ela acrescenta muita coisa. Você pode ir a todos os eventos de soul, todos os bailes, independente de quem esteja produzindo, e vai notar que a maioria dos frequentadores já se conhece; quando não se conhecem, fazem amizade. É importante para que vejam como é bom fazer um evento cultural, onde as pessoas vão somente para extravasar e não para arrumar confusão. Por isso que chama soul, é a alma. Cada um tem a sua, então ninguém vai para reparar em ninguém. A pessoa chega e dança do jeito que quiser. Qualquer coisa que ela lançar ali ele vai estar dançando, o que ele fizer ali já tá valendo, ele está participando.
O Baile da Saudade tem essa questão forte de valorizar a cultura soul, a cultura negra. Como você vê a importância disso em um país, onde o racismo ainda se faz presente?
Eu acho que na cultura não cabe o racismo. Não tem jeito, porque o povo é formado por diversas raças. Acho que se uma pessoa vai em um evento como o Baile da Saudade, um baile da black music, só de ela estar ali já é constatado que ela não tem preconceito, quem tem preconceito não passa nem perto.
Como você vê a cena do soul em Belo Horizonte atualmente?
Graças ao Baile, o soul se espalhou pela cidade. Hoje temos várias bandas que tocam este estilo em BH, como o Berimbrown, o Cromossomo Africano, a Black Machine, que é mais nova. Belo Horizonte chegou a ser adotada como a capital do soul no Brasil, mas isso perdeu um pouco de força nos últimos tempos, principalmente por causa dos organizadores novatos de eventos de soul, que ao invés de se unirem, passaram a querer fazer concorrência. Eu acho que tudo que é feito em prol de uma raça, de um evento cultural, tem que partir da união. Cultura não é concorrência. Se o cara é negro, ele é negro, tem que se unir. Se é a cultura dele, tem que se unir. Não tem que atrapalhar o irmãozinho dele que está fazendo o mesmo. Para transformar de novo Belo Horizonte na capital do soul a gente precisa dessa união. O pessoal do sertanejo, você já viu a união deles? Todos os cantores rapidamente ficam bem. Os DJs de outros ritmos também, porque existe essa união. Um anunciando o outro, um falando do outro.