(Hoje em Dia)
A última vez que David Bowie pisou em um palco brasileiro foi no dia 2 de novembro de 1997, no Rio de Janeiro. Antes, Bowie veio ao Brasil em 1990, em dois shows – um no Sambódromo, no mesmo RJ, e outro, em SP, pela turnê “Sound + Vision”. Mas o tema do relato aqui é a derradeira apresentação, pela “Earthling Tour”, em palco carioca, que teria sido combinada de última hora - mas isso era conversa motivada por ansiedade de fã, em um país ainda sem a invasão quase em massa da internet e das mensagens instantâneas.
A previsão é de que, naquela passagem pelo país, Bowie iria apenas para Curitiba e São Paulo. As duas primeiras possibilidades de encarar o "Camaleão" ao vivo estavam descartadas por causa de compromissos familiares. O Rio foi a salvação.
Quando era criança, eu fazia dever de casa ao som de “Wild Eyed Boy From Freecloud”, que meu irmão mais velho, César, rodava em "k-7" lá em casa. E, naquela semana inesquecível, me vi prestes a conhecer o dono da voz desta canção e das performances múltiplas às quais o mundo rende homenagens saudosas. E lá fomos nós, em 1997, eu e meu irmão, para sermos arrebatados ao vivo pelo olhar de pupilas desiguais do ídolo.
Bowie, que vinha numa indumentária indiana, unhas dos pés com esmalte preto e aquele corpo irretocavelmente esguio, entrou ao som de “I’m Afraid of Americans”, enlouquecendo o público do antigo Metropolitan, na Barra da Tijuca. Esta canção é do disco que deu nome à turnê. Na capa dele, Bowie aparece poderoso, mas de costas, vestindo um casaco estampado com a bandeira da Inglaterra.
Entenda, leitor: há 20 anos os shows internacionais não eram tão comuns por aqui. E sair de Minas Gerais para o Rio de Janeiro para ver um espetáculo era um cavalo de batalha. Grana para a viagem? De carro/ônibus ainda era mais barato. (Mas fomos de avião. Meu irmão pagou tudo! Valeu, mano!) E quem iria comprar o ingresso para nós? Venda on-line? Impensável. Por fim, os trâmites foram resolvidos com “pulsos além da franquia” na conta de telefone com vários interurbanos para a Cidade Maravilhosa e com a colaboração de alguns amigos cariocas.
Agora, imagine o impacto de um show desses para uma adolescente de meados dos anos 1990: Uma amiga cearense, que hoje vive em Curitiba – mas que veio para BH com a irmã estudar no cursinho naquela época, onde as conheci - manda uma mensagem há pouco: “E o David?” E olhe que não tinha contato com ela há um tempão. Minha admiração a marcou também. Vai ver que falei do show durante o mês inteiro com os colegas... E, meu irmão, lá das férias dele, ainda completa: “Fale da nossa experiência no show”.
Então, preste atenção, leitor! E estávamos no “gargarejo”, sem aquele fosso ingrato de aproximadamente dez metros que costuma separar ídolos de fãs. Dava para pegar na barra da calça de Bowie, nos pés. E ele não se esquivava. A casa de shows era pequena e, mesmo assim, não estava lotada. Neste ponto, Marcelo, um amigo do meu irmão, radicado em Londres há 12 anos, foi preciso em lembrar-nos nesta segunda-feira ao saber da morte de “Mister David Robert Jones”. “A plateia não estava preparada para aquilo. O Brasil estava mal informado sobre ele na época. Foi uma das últimas apresentações dele pela América Latina”, lembrou ele, que também estava no show (e ofereceu duas das fotos aqui postadas).
No show, Bowie trouxe techno, música eletrônica e rock do bom. Alguém aí ainda se lembra do que é um bom rock? Além disso, no disco e no show, sente-se o Camaleão ainda sob alguma influência do Tin Machine – banda de hard rock que integrou no final dos anos 1990. Afinal, no comando da guitarra da tournê "Earthling" estava Reeves Gabrels, que idealizou o “Tin” com Bowie. E Bowie olha e encanta. Aquilo que você fica uma semana lembrando, lembrando... A pupila que se dilatou após uma briga na adolescência está sempre a favor de quem a carrega.
GUITARRA DE PESO - Reeves Gabrels de "kilt". Para encarar o calor? Crédito: Arnaldo César Duarte/Arquivo pessoal
“Ele não tinha medo de olhar para a plateia. Não tinha esse medo de tocar no público. Não tinha medo de ser um pop star. Esse olhar é o lado de ator dele. Ele não fazia nada em vão no palco. Sabia como magnetizar. Ele tinha uma formação de mímica. Ele não brincava em cena”, diz Marcelo, o nosso amigo, pelo "zap", lá de Londres. Assim, Bowie entrou e marcou a vida de um monte de gente ali e para além das portas do Metropolitan: eu, meu irmão, Marcelo, e, por tabela, minha amiga cearense de passagem por BH para estudar.
A apresentação foi aberta pela Erasure, dupla também da “terra da rainha” e que recebeu dezenas de ursinhos de pelúcia jogados no palco pelos fãs. Mas o grande convidado era mesmo Bowie. Cantou impecavelmente, manipulou as bolas infláveis decoradas com desenhos de olhos do cenário, tirou as sandálias, suou, encarou os fãs leais com “aquele” olhar, mas... falou pouco. Também, show relativamente vazio. E Rio 40 graus, no calorão. Será?
Na primeira vez que David Bowie pisou no Brasil, com a “Sound + Vision”, com um monte de hits, somente Marcelo foi. Nesta segunda-feira, com o anúncio irremediável, ele disse que não se falava de outro assunto nas TVs inglesas. Comovido, ele lembra que "conheceu" Bowie na imagem icônica na capa “Aladdin Sane”, em um álbum de figurinhas, no início dos anos 1970. “Não tinha informação do que era aquilo. Era a mesma época do Secos & Molhados. E tem muito a ver com o visual”.
Ainda no show na Barra, Bowie cantou “Looking for Satellites”, “Telling Lies”, e em mais um momento levantou a plateia com “Battle for Britain (The Letter)”, também do disco da turnê. Do repertório já consagrado cantou “Fashion”, “The Man Who Sold the World”, "Scary Monsters (And Super Creeps)", “Under Pressure” e “All the Young Dudes”. Emendando com as mais recentes, mas para aquela década: “The Hearts Filthy Lesson” e “Hallo Spaceboy”.
NO SEGUNDO PLANO - Mike Gordon (teclados), Crédito: Arnaldo César Duarte/Arquivo pessoal
Naquele show, há quase 20 anos, “Fame” foi uma das últimas. E nesta canção, vem uma frase do artista que nunca se contentou com a estagnação – muito menos com o conforto da vasta e diversa obra constantemente carregada de fama: “Fama não é o seu cérebro. Mas é a chama que incinera para lhe manter insano”. Ele sabia das coisas.
De Londres, nosso amigo diz que um morador de Brixton, bairro onde Bowie nasceu, explica porquê gosta do artista: “Ele era aqui da região...” Mas há quase 40 anos que Bowie saiu de Londres! Como assim? Talvez para sair do assédio da imprensa “tabloidiesca”. Ou, quem sabe, Londres fosse um tanto "pequena" para ele?
Mas quem é esse Bowie?
O artista que foi extraterrestre, andrógino, palhaço, homem elefante, cool, pop, ordenou “ch-ch-changes!”, sonhou que todos seríamos heróis, mesmo que por um dia, inebriou-se com a fama, criou até o último suspiro. Sem preguiça. E nos últimos anos, viveu o último papel dele e o mais inédito: o de pai de família ao lado a mulher, a ex-modelo Iman, e da filha caçula, Alexandria. (Diziam os jornais que ele a buscava na escola, em um carro discreto.)
Mas, hoje, os olhos do ídolo estão cerrados e as pupilas desiguais guardadas. E, encantamento, agora, é uma oração do meu irmão à beira mar: “Obrigado, Bowie!”
SANDÁLIA AOS PÉS - Look indiano, esmalte preto nas unhas dos pés e esguio "irretocavelmente". Crédito: Arnaldo César Duarte/Arquivo pessoal