Ribeirão de Henfil e a trilha do criador do Fradim por Neves

Elemara Duarte - Hoje em Dia
03/02/2014 às 08:04.
Atualizado em 20/11/2021 às 15:45
 (Cau Gomes)

(Cau Gomes)

Ribeirão é das Neves, mas também pode ser de Henfil. Na cidade da região metropolitana de BH, há 70 anos, a serem completados nesta quarta-feira, nascia um dos mais importantes e autênticos cartunistas brasileiros. O lugar era uma bucólica e familiar vila de funcionários públicos, mas dentro da área da Penitenciária Agrícola de Nossa Senhora do Ribeirão das Neves, hoje Penitenciária José Maria Alkimin.   Hoje, a região que era só fazendas cresceu. Os problemas da urbanização também. Justas homenagens com o nome do filho ilustre estão em uma escola da periferia, em um curso profissionalizante, em uma rua.   A casa 21, onde Henrique de Souza Filho, o “Henriquinho”, passou os primeiros meses, tem outros moradores, mas a vila permanece surpreendentemente calma. A fama do imóvel faz com que seu tombamento possa ser reaberto neste ano. Um museu ali? O tempo dirá.    Por enquanto, é tudo silêncio. Às vezes, interrompido pelo vozerio dos internos da penitenciária, durante o banho de sol. Outras vezes, por passarinhos nas palmeiras. Contrastes? Muitos. Mas certamente isso mostrou à família de seu Henrique e dona Maria, pais do cartunista e de seus irmãos, a vida como ela é. Henfil, por sua vez, conhecendo o tamanho real dos “monstros”, é que pode enfrentá-los com tanta coragem.   "Triângulo do Arrudas" na rota do cartunista    Ninguém vai a um presídio ou próximo dele, sem ficar meio cabreiro. Policiais, muros, segurança reforçada, autorizações, perigo. Mas o senso comum cai por terra na Vila Esplanada, em torno da Penitenciária Agrícola, onde o futuro criador da sábia Graúna e do bipolar Fradim nasceu.   “Era Neves, por causa do presídio e, Barbacena, por causa dos loucos”, explica a má fama do local, o aposentado Salvador Tomé da Silva, 78 anos, que mora na vila junto da esposa, funcionária da instituição.    Na isolada região, a ideia inicial para o presídio, diz Silva, era a de “reintegração do penitenciado”. Fábricas de móveis, granja e um pomar que chegou a ter mais de seis mil laranjeiras tinham como trabalhadores os próprios presos.  “Isso daqui era lindo! Autossustentável”, aponta. “Na vila, veja, as casas são em estilo americano. Sem muros”, complementa o diretor administrativo da Penitenciária João Ribeiro Prata.   O presídio tinha cinema para os internos, mas a população também entrava. E, por sua vez, ela também era bem-vinda no espaço com suas peças teatrais. “Tínhamos um grupo amador de teatro. Lembro das filhas do seu Henrique – irmãs do Henfil – de Zilah (Spósito) e Maria Cândida (a “Tanda”, hoje, vivendo em BH), com quem contracenei na peça ‘Alma de Outro Mundo’”, recorda o aposentado Pedro Nogueira, 90 anos.   Nogueira trabalhou no presídio e hoje mora no Centro da movimentada Ribeirão das Neves, em uma casa de muros altos e câmera de segurança. É para livrar da poeira do asfalto, seu Pedro? “Poeira humana”, completa.   Maria da Conceição Figueiredo Souza (1906-1995) e Henrique José de Souza (1895-1960) tiveram oito filhos. Os quatro primeiros nasceram em Bocaiuva, terra natal deles. Dois, Maria da Glória e “Henriquinho”, nasceram em Neves. O patriarca teria ido para o local com a família a convite de José Maria Alkimin, primo da esposa. Ali, trabalhou no almoxarifado.      Malas prontas para BH   Nos final dos anos 1940, a família mudou-se para BH. Irmã de Henfil, a jornalista Wanda Figueiredo conta no livro “Balaio Mineiro Memória de Uma Família Brasileira” (2008): “Novamente Alkimin em ação. Provedor da Santa Casa, oferece emprego a Seu Henrique, como gerente do serviço funerário”.   Os Souza moraram nos bairros Floresta e em uma casa na rua Ceará, em Santa Efigênia, onde hoje fica o prédio da Maternidade Octaviano Neves. “Henfil dizia que sua personalidade se justificava desde o nascimento, num presídio, e por ter crescido no ‘Triângulo do Arrudas’: entre a Santa Casa, a funerária e o quartel (na Praça Floriano Peixoto)”, lembra o amigo e também cartunista Nilson.    Hemofílico, Henfil morreu em 4 de janeiro de 1988, em decorrência das complicação do vírus HIV contraído em transfusão de sangue. Antes, Nilson lembra que o amigo demonstrou vontade de escrever as memórias dele sobre o período em que morou em BH.   "Henriquinho" na China, no Canadá e nas novas edições de Fradim   Em um baú, dentro de um apartamento na Serra, região Centro-Sul de BH, estão guardadas fotos raras e cartas trocadas entre os Souza, muitas delas, de seus filhos mais ilustres – Henfil e o sociólogo Herbert de Souza, o “Betinho” (1935-1997). No Rio, o filho de Henfil, Ivan Consenza, guarda 15 mil originais do acervo do pai. “Possivelmente, tem alguma coisa inédita”, anuncia ao Hoje em Dia.    Ivan está em processo de captação de recursos para construção da sede física do Instituto Henfil. Para atender ao público da nova geração interessado pela arte do cartunista, a “Coleção Fradim”, uma de suas criações mais conhecidas, é relançada.  São 31 revistas originalmente publicadas entre 1971 e 1980 com tirinhas e histórias dos personagens Cumprido e Baixim, os “Fradins” propriamente, além dos também conhecidos Graúna, Bode Orelana e Capitão Zeferino, a “Turma da Caatinga”. A publicação é feita pelo Instituto, em parceria com a ONG paulista “Henfil – Educação e Sustentabilidade”.   O baú da Serra   O apartamento da Serra, que guarda verdadeiros tesouros, é de Maria Cândida, a “Tanda”, onde ela vive com a, também irmã de Henfil, fotógrafa e terapeuta Filomena Maria Figueiredo Souza, a “Filó”. E é ela quem mostra o baú e relembra as histórias de família.   “Essa daqui foi quando o Henriquinho levou a mamãe para o Canadá. Eles foram visitar o Betinho no exílio”, diz. Um postal de Henfil, engraçadíssimo, vem da China – um ano antes do cartunista publicar o diário de bordo “Henfil na China”, sobre sua viagem ao país de Mao Tsé-tung.   Tanda é a irmã mais velha. “Filó” é a mais nova, das mulheres. Depois dela, veio o caçula, o músico Chico Mário (1948-1988), fechando a ala masculina dos irmãos Souza. Assim como os demais irmãos, Chico era hemofílico e morreu em decorrência de complicações da Aids, no mesmo ano que Henfil.    Ainda entre os guardados, coleções originais de Fradim, páginas de jornais, cópias de ilustrações do Pasquim, jornal onde o nome de Henfil ganhou fama e admiradores.  “Henriquinho era belo, moreno, parrudo, olhos deslumbrantes, malandro”, brinca a ex-parteira da Santa Casa e ex-enfermeira da família Souza, Maria Luiza de Deus, aos 95 anos. “Ele tinha bondade. Era um malandro do bem”, completa o cartunista Nilson. (ED).    Informações e compras: livrobalaiomineiro@gmail.com e www.colecaofradim.org.br/lojavirtual)   Depoimentos   Referência e ética   "O Henfil ensinou muitas coisas, na parte gráfica, no conceito de humor, na consciência profissional e social. Também não o conheci na ‘estaca zero’, vamos dizer – minha identificação com ele é em decorrência da profissão e da militância que eu também exercia. São várias pequenas lições e conversas produtivíssimas que tivemos, durante uns poucos e intensos anos”. Laerte, cartunista   “Ele tinha aquela personalidade do Fradim, super criativa e surpreendente. Morei no mesmo apartamento que ele durante dois anos, em São Paulo. Líderes da Liga Camponesa e procurados pela ditadura ficavam escondidos lá. Não tinha luxo, não tinha nada. A mobília era de bambu. A obra dele, às vezes, questionava o próprio leitor. Ilustra aquilo que está na nossa cara e a gente não quer ver. Ele aclarava as coisas. Pela posição dele, sabíamos o que  era ético". Nilson, cartunista   "Henrique de Souza Filho do Brasil, comemoraria hoje 70 anos - certamente - muito feliz com a nova paisagem".
Caulos, "desenhista de humor", pintor e escritor

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