Sobre folhas enigmáticas e os mais variados estados da alma

Patrícia Cassese - Hoje em Dia
06/03/2014 às 07:52.
Atualizado em 20/11/2021 às 16:27
 (Divulgação)

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Em um certo dia, triste, em seu carro, uma folha entrou por uma fresta da janela e caiu, delicada, no colo da cantora e atriz Andreia Mota. “Foi como se tivesse sido acordada ali. Como um sinal falando: ‘ei!’”, rememora a carioca, que acaba de lançar seu primeiro disco de carreira, “Paisagem Invisível”. E o evento citado tem tudo a ver com o trabalho. Ou, pelo menos, com a apresentação dele em show. “Contei o acontecimento para a Alessandra Gelio, diretora e dramaturga, e ela captou a atmosfera intima da história e escreveu o texto no qual divido com o público como começou o projeto”.    Em cena, Andreia, sobre uma mala antiga, diz: “Um dia, caminhava nostálgica por uma rua de barro perto da minha casa e, quando passei embaixo de uma árvore muito antiga, eis que uma folha caiu e respirou bem no meu ombro. Ela inspirou, inspirou, inspirou.... e só expirava ‘despalavra’. Perguntei o que era ‘despalavra’, ela me ‘epifanou’ com uma dança. A folha me tirou pra dançar”.    Sim, a narrativa adicionou poesia a um fato que, para muitos, passaria despercebido. Não para Andreia. Ao contrário, ela conta um desdobramento ainda mais inacreditável. “Após essa história virar parte do ‘Paisagem Invisível’, mais folhas começaram a cair no meu colo: no carro, no ônibus, na calçada... E sempre em momentos bem peculiares. Cheguei a perguntar a outras pessoas: ‘Folhas costumam cair no seu colo?’”, ri.    O texto, pois, parte de uma história vivida por ela e, assim como toda a encenação, soa propositalmente absurdo e real ao mesmo tempo. “Uma mistura de ficção, realidade e poesia que caracteriza a atmosfera despojada e lúdica do espetáculo. Coincidência ou não, agora, quando isso acontece, é minha forma de fazer comunhão, de receber os sinais, enfim, de me religar com o invisível”, filosofa.    Ao disco, então. “Paisagem Invisível” reúne 12 composições. “Queria falar sobre as sensações de alma, sobre o impalpável, e, ao ler o prefácio de ‘O Cancioneiro’, de Fernando Pessoa, ‘todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem’, dei o nome ao show. Utilizando desta ideia, no show e no CD cada música é uma ‘paisagem’ ou ‘estado de alma’ diferente”, conta.    A construção de uma sonoridade cênica e imagética em pauta   Uma curiosidade é que o diálogo entre música e cena, que está no cerne do trabalho, começou a ser travado já a partir da concepção musical, e se desenvolveu por meio das longas conversas entre Andreia e Victor Ribeiro sobre o projeto.    “Desde o primeiro arranjo que ele fez (“Inútil Paisagem”, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira), foi gol! Ele construiu uma sonoridade cênica e imagética. Lembro de ele dizendo que precisávamos fugir um pouco das estruturas musicais convencionais – dos clichês – para que o público ouvisse de forma menos racional, se permitindo ‘sentir’ mais sensorialmente”.   “Paisagem Invisível” se propõe, pois, a construir “fotografias” de paisagens e estados de espírito (inspirado naquela primeira ideia, de Fernando Pessoa). “Por isso também a escolha de um repertório tão eclético, que viria a ser ‘ressignificado’ e unificado através dos arranjos”.    As músicas do CD foram escolhidas, inicialmente, a partir dos artistas que influenciavam Andreia, como Jobim, Milton. “Tenho muita admiração pela música mineira, pelo Clube da Esquina e verdadeira fascinação por Milton, Wilson Batista... Quis fazer releituras de modo a imprimir uma identidade própria, trabalhando-as com elementos do nosso folclore, do jazz e da música erudita”.   “Foi naturalmente que conheci, ao longo do processo, novos compositores, de alguma forma engajados em construir um discurso próprio também. Através do Marcelo Fedrá conheci um grupo de jovens, cariocas, dentre eles, Renato Frazão, Thiago Amud (que junto ao Fedrá compôs a musica que dá nome ao CD). Eles trouxeram o frescor do ineditismo que estava se construindo naturalmente com a direção e produção musical de Ribeiro”.   O repertório, pois, é metade releituras e outra parte de inéditas, sendo três delas compostas especialmente para o show, refletindo sobre o tema “Paisagem Invisível” (“Contumaz”, “Paisagem Invisível’ e “Dos seus olhos”). Em tempo: “Paisagem Invisível” está disponível no Itunes, CDBaby e www.andreiamota.com.br. Valor CD: R$20. (PC) Manoel de Barros, uma influência.   “Mais do que a poesia em si, desejei levar para o show os elementos lúdicos e cotidianos, a subversão do sentido das palavras, a ousadia de ir além delas criando imagens inusitadas. Manoel de Barros apareceu num estágio muito oportuno do processo criativo: foi como se a partir de então, houvesse uma permissão para criar com mais liberdade”.

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