(Kriz Kanack / Divulgação)
Stella Florence levou três anos para escrever “Eu Me Possuo” (Panda Books, 182 páginas), livro que lança hoje em Belo Horizonte, pelo projeto “Sempre um Papo”. A escritora teve de burilar bastante o texto por tratar de um tema delicadíssimo: o estupro.
Na trama, a personagem Karina reencontra um antigo amor que a havia estuprado no passado. Coincidentemente, o livro sai justamente quando o Brasil se vê em um grande debate sobre a cultura do estupro, por conta dos casos de abusos coletivos que aconteceram recentemente no Rio de Janeiro e em Juiz de Fora.
“Faz muito tempo que queria escrever sobre isso, porque sou uma das incontáveis sobreviventes de abuso sexual. Esperei ter maturidade literária para escrevê-lo, pois não queria um livro muito pesado, que desse uma sensação de horror, mas que também não fosse leve”, conta a escritora, que já havia abordado o assunto no conto feito para “O Livro Branco” (Record), uma reunião de textos de escritores promissores do país.
Conversa
Como já havia escrito sobre a temática em outras ocasiões, Stella costuma receber muitos e-mails de suas leitoras, com desabafos sobre os episódios em que foram vítimas de abusos. Com o lançamento de “Eu Me Possuo”, o número de e-mails aumentou consideravelmente.
“Meu público é majoritariamente feminino e muitas mulheres me escrevem para desabafar. Vejo que esse assunto é muito recorrente”, conta Stella. “Os relatos são muito parecidos. As sensações que ouvi de todas as vítimas são parecidas. Homens abusados sentem um certo desejo de vingança, mas as mulheres sentem vergonha e culpa. O que mais repito nas respostas é: ‘não foi sua culpa’”.
Por sinal, foi uma leitora dela quem assinou a orelha do novo livro. A moça havia procurado a escritora para contar sobre os abusos sofridos na infância por um tio e pelo primeiro namorado.
Cultura
Segundo Stella, estupros coletivos sempre existiram na história da humanidade. Só paramos para falar sobre o assunto na mídia e nas redes sociais porque homens decidiram se vangloriar na internet, se mostrando orgulhosos em violentar uma jovem. “Hoje o estupro coletivo virou uma modalidade de diversão para rapazes”, constata.
E estranha quando alguém diz que não há uma cultura do estupro, já que a maioria das pessoas é contrária a esse crime hediondo. “A palavra cultura vem do latim culturae, que significa cultivar. E é o que fazemos: cultivamos frases e atitudes que acobertam crimes. A maior prova que existe uma culturas do estupro é o silêncio da vítima. Tanto é que, se você for assaltado e levarem seu celular, você vai fazer um boletim de ocorrência e avisar seus amigos, mas com o estupro, não. A cultura é de culpar a vítima”.
Cenas de estupro em programas de televisão costumam gerar debateReprodução Debate – Alice Wegmann em cena de “Ligações Perigosas"
Cenas de estupro na TV sempre dão o que falar nas redes sociais – quem acompanha “Game of Thrones” sabe bem disso. Uma delas foi muito comentada no início deste ano, quando foi ao ar a cena da primeira noite de sexo entre Augusto de Valmont e Cecília, na minissérie “Ligações Perigosas” (Globo). A versão, de Manuela Dias, inova ao mostrar como estupro o trecho crucial do clássico de Choderlos de Laclos publicado em 1782.
Mad Max’ e a trilogia ‘millenium’ são exemplos de mulheres que se vingamDivulgação Furiosa – Charlize Theron em “Mad Max”
Na contemporaneidade, há histórias em que personagens femininas se vingam de seus algozes. Na trilogia “Millenium”, do sueco Stieg Larsson, a protagonista devolve a violência a seu estuprador de maneira impressionante (só lendo ou vendo uma das adaptações para “Os Homens que Não Amavam as Mulheres” para saber). Já em “Mad Max – Estrada da Fúria”, Furiosa e as “imperatrizes” vivem um embate com o vilão Immortan Joe.