Uma das grandes paixões platônicas da minha adolescência foi a atriz Kate Lyra, uma louraça de estonteante beleza e curvas, mulher do compositor Carlinhos Lyra, fera da bossa-nova nos anos 1960/70. Norte-americana, a moça fazia sucesso em programas humorísticos da TV como uma inocente garota de saias muito curtas, encantada com a gentileza dos homens brasileiros no trato com as mulheres, principalmente com ela. “Brasileiro é tão bonzinho!”, era o bordão, carregado de sotaque e ingenuidade, da Kate ao relatar para o Paulo Silvino casos que exprimiam as “nobres” intenções dos nossos “gentlemans” ao abordá-la. “Bonzinho, muiiiiiiiiiiiito bonzinho,” retrucava o ator com o ar de cafajeste que caracteriza os personagens que protagoniza nas telinhas no país.
O quadro humorístico tem me vindo muito à memória ultimamente por causa do curto-circuito que se abateu sobre as cabecinhas ditas pensantes do país, por causa da violência e da intolerância do debate que se trava na internet no Brasil sobre qualquer assunto. É verdade. O pau canta solto nas redes sociais e não apenas no terreno da política. Torcedores de futebol, religiosos, ateus, feministas, machistas, idiotas e afins engalfinham-se diariamente nas redes sociais. Sem o menor prurido de lançarem mão de golpes abaixo e acima da cintura contra os inimigos. Isso mesmo, inimigos. Porque nas redes sociais não tem havido muito espaço para o debate civilizado, democrático, deixando os bons moços perplexos.
Qual é a novidade, além das queixas do bom mocismo nacional ao de criticar a violência dos debates sobre os graves problemas do país? Até parece que, como acreditava minha musa Kate Lyra, o brasileiro é mesmo muito bonzinho. A tentativa de tapar o sol com a peneira que obscurecia o entendimento da gostosona é típica da cultura nacional. Não tenho dúvidas de que a maioria esmagadora do nosso povo se vê como boa praça, honesto, legal, pacífico, gentil, quase um santo de cordialidade.
“Não creio que no Brasil, com a internet, exista mais agressividade no debate. O Brasil sempre foi agressivo”, analisa o sociólogo espanhol Manuel Castells, autor do livro “Redes de Indignação e Esperança – Movimentos Sociais na Era da Internet”. Irônico, o sociólogo espanhol provoca: a imagem mítica do brasileiro simpático existe só no samba. Alguns dados do Mapa da Violência 2014 corroboram o que disse Castells: em 2012, 154 pessoas foram assassinadas por dia, o que significa 56.337 mortos, ou 7% a mais do que em 2011. As principais vítimas são jovens do sexo masculino e negros (30.072, com idade entre 15 e 19 anos).
Em 2013, o Brasil registrou 50.320 casos de estupro, ou 96 a mais do que o registrado em 2012. Segundo os especialistas no assunto, os dados estão subestimados porque o medo e o preconceito inibem as vítimas de denunciarem a violência que sofreram. Sabem por quê? Porque a maioria dos estupros ocorre nas residências das vítimas e são praticadas por parentes – pais, irmãos, tios, etc. Segundo o Nacional Crime Victimizations Survey (NCVS), somente 35% das vítimas prestam queixas.
Os custos com a violência no Brasil em 2014 chegaram a R$ 258 bilhões, ou 6% do PIB nacional. Brasileiro é tão bonzinho, não? Muiiiito bonzinho. Tanto na internet, quanto na vida real, não é mesmo?