Carlos Starling

Destruição da Amazônia aumenta risco de epidemias, alerta médico que atuou no comitê contra Covid

Médico acaba de lançar o livro “O tempo sem tempo”, com histórias que escreveu durante a pandemia

Pedro Santos*
pedro.sousa@hojeemdia.com.br
30/10/2023 às 07:47.
Atualizado em 30/10/2023 às 07:53
Formado há 41 anos na UFMG, ele também é pesquisador e trabalhou em vários hospitais de BH (Divulgação)

Formado há 41 anos na UFMG, ele também é pesquisador e trabalhou em vários hospitais de BH (Divulgação)

O desequilíbrio ambiental na Amazônia, maior floresta tropical do mundo que sofre com queimadas e desmatamento há décadas, pode provocar no futuro novas epidemias, aumento os riscos à saúde da população. A análise é do renomado infectologista Carlos Starling, que atuou ao lado de outros profissionais no extinto Comitê de Enfrentamento à Covid, em BH.

“O descontrole ecológico é um problema grave que nos coloca em risco”, analisa o médico, formado há 41 anos na UFMG. Também pesquisador e com atuação nos hospitais Vera Cruz, Felício Rocho, Lifecenter, Baleia, São Francisco de Assis e na rede Fhemig – onde ficou 35 anos –, Starling acaba de lançar um livro com histórias que escreveu durante a pandemia.
 
Além da produção da obra “O tempo sem tempo”, e da preocupação com a Amazônia, o infectologista falou sobre o combate às fake news, coronavírus, vacinação, dentre outros assuntos. Confira e entrevista.

Como surgiu a ideia do livro? Quanto tempo o senhor levou para produzir e o que os leitores vão encontrar nas páginas?
Eu já escrevo há muitos anos. Durante o período mais crítico da pandemia, algumas dessas crônicas foram selecionadas pelo curador da Autêntica (editora). Então esse livro é um resumo desse período e que foram selecionadas pelo Chico Mendonça (jornalista). Nem sempre são crônicas tristes, tem várias engraçadas. Fui escrevendo aos poucos, os textos foram trabalhados num período de seis meses. Esse livro é um resumo do que nós vivemos, e o título foi dado pela Lilia Schwarcz (historiadora e antropóloga). É um tempo que você não sabia o que iria acontecer, um hiato na nossa existência, o tempo que não acaba, que parecia infinito para todos nós.

Há três anos, ainda em meio à crise sanitária provocada pela Covid, o senhor disse que outras pandemias virão. O senhor ainda mantém esse alerta?
É um alerta da OMS (Organização Mundial de Saúde). É um consenso entre pesquisadores do mundo inteiro. Nós sabíamos que alguma coisa estava para acontecer, porque a destruição da natureza, o processo de comunicação rápido e a mobilidade social muito grande, aliados a uma exploração de um espaço onde essas doenças circulam, acabam expondo o indivíduo a esses vírus que uma hora se adaptam ao ser humano, e aí ocorre o contágio, porque circulamos pelo planeta. O descontrole ecológico também é um problema grave que nos coloca em risco. Essas epidemias podem surgir no Brasil a qualquer momento pela forma que a Amazônia vem sendo explorada há décadas, somada ao fato de que nós não conhecemos praticamente nada dos vírus que circulam ali. Um pesquisador de Belém do Pará que eu conheço descreve inúmeros vírus que circulam ali e que podem se adaptar, fazendo o que nós chamamos de “jumping”, o pulo entre espécies. A invasão do espaço natural nos expõe a riscos aos quais nós ainda não conhecemos. 

E como reduzir a ação de possíveis novas pandemias?
Educação! Educação epidemiológica, ecológica, de princípios científicos. Uma das coisas mais terríveis que vivemos foi a invenção de ciência, a ciência fake, e mesmo para quem está dentro da área, mesmo pra quem trabalha em cada uma delas, saber o que tem e não tem valor em ciência, ou seja, como deve ser feita a boa ciência. A interpretação é um processo pedagógico que tem que ser ensinada a vida inteira, do ensino básico à faculdade. 

O que nós aprendemos com a pandemia?
Inúmeros ensinamentos. A questão da vida em comunidade, o respeito à vida e à dignidade, o amor ao próximo, que é algo tão decantado por inúmeras religiões, mas que geralmente as pessoas não praticam tanto. Diante de uma incerteza tão grande, como a que pandemia gerou em nós, a valorização de cada minuto da existência, isso mexeu muito com a população. Temos também, a importância da democracia, da imprensa livre que foi fundamental nesse processo. Eu nunca tinha visto todos os órgãos de imprensa se unindo para dar informação, isso é histórico, é maturidade, e a gente amadurece às vezes 30 anos em 3. Aliás, esse é um dos legados, o amadurecimento precoce que a dor provoca. Nós tivemos também na pandemia um aprendizado espetacular que foi a utilização da tecnologia voltada para a comunicação. Foram milhares de entrevistas que dei sem sair da minha casa, e a utilização dessas ferramentas é um legado, com certeza. 

Passados quase quatro anos após o início da pandemia, já se sabe o bastante sobre o novo coronavírus?
Temos um conhecimento espetacular. Não conheço na história da ciência uma doença que tenha sido estudada de forma tão intensa e profunda como foi com a Covid. No entanto, não significa que não temos mais o que aprender, principalmente sobre as consequências para quem tem Covid. Hoje já estamos vendo com muito mais clareza as lesões neurológicas, cardiológicas, o desencadeamento de doenças autoimunes associadas à Covid. As fake-news querem atribuir isso à vacina, e é mais uma mentira que inventaram. 

Os mesmos erros cometidos poderão ocorrer novamente?
Se você pegar relatos ao longo de várias outras pandemias que tivemos, basicamente as mesmas coisas aconteceram. A mentira sempre aconteceu, por exemplo. Quando criaram a vacina contra a varíola, falaram que quem tomasse ia virar boi, porque foi utilizada a varíola de bovinos para desenvolver o imunizante. Então, não podemos cometer o erro de se admitir novamente discursos contra a ciência.
 
Existe risco de voltarmos ao auge da pandemia?
Não sou pessimista nesse nível. Acho que já temos uma linha de cuidado e conhecimento suficientes. Naquele momento, não tínhamos nada. Não tínhamos vacina, tratamento. Não conhecíamos o vírus, não havia diagnóstico adequado, não tinha terapia intensiva em número de leitos necessários... A nossa realidade é completamente diferente. No entanto, continuamos tendo que ter cuidado, e orientado as pessoas a se cuidarem. 

O senhor ainda usa máscara em alguma situação específica?
Uso. Hoje (há duas semanas) voltei de uma viagem, e juntamente com alguns “gatos pingados” em um voo com mais de 200 pessoas, eu era um dos poucos de máscara. Uso dentro de aviões, quando vou ficar perto de muitas pessoas em um ambiente fechado. Estou com todas as vacinas em dia, mas ainda assim uso máscara em ambientes fechados e aglomerados. 

E as festas de fim de ano chegando...
As pessoas devem se preocupar sim, sobretudo com as mais velhas e com doenças crônicas. E ter também princípios de civilidade. Se você estiver gripado, ou com infecção respiratória, seja qual for, teste-se! E no período agudo da doença, fique quieto em casa.

O senhor participou do Comitê de Combate à Covid-19 em BH. Foi o maior desafio da sua vida?
Foi o desafio que mais me pressionou na minha carreira profissional. Mas, de 1982 pra cá, essa não foi a primeira dificuldade. Enfrentei surtos de dengue, febre amarela, chikungunya, H1N1. Costumo dizer que minha vida foi uma “vida pandêmica”. Atendi os primeiros pacientes com Aids em Belo Horizonte, junto com outros médicos, então eu já tinha enfrentado problemas muito graves e desafiadores antes da pandemia. Mas ela foi, do ponto de vista de impacto na população, como um todo, o grande desafio. 

Mesmo com todas mortes provocadas pela Covid e os apelos ainda frequentes de médicos, como o senhor, muitas pessoas ainda não concluíram o esquema vacinal contra a Covid. Como o senhor avalia essa baixa cobertura?
Vem pela falsa percepção, e isso tem a ver com a comunicação com a população. Talvez isso tenha tido uma perda importante com o fim do comitê. A conversa com a população, explicar de forma detalhada, não por meio de WhatsApp. Usar os meios oficiais, conversando diretamente com a população para mostrar que o vírus continua circulando, que a síndrome pós-Covid ainda não está completamente esclarecida. As consequências de ter Covid, principalmente de forma leve, não são totalmente conhecidas, mesmo com todos os avanços que fizemos. É importante que as pessoas entendam que a grande arma que nós temos é a vacinação.

* Estagiário sob supervisão de Renato Fonseca

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