Ser desnecessário para a prole incentiva autonomia e segurança dos pequenos e traz leveza para o lar, garante Lina Valléria
A primeira reação dos pais ao escutarem que precisam se tornar desnecessários aos filhos pode ser de espanto e ceticismo. Lina Valléria, empresária especialista em comportamento empreendedor, no entanto, defende a ideia com leveza e traz reflexões sobre o tema no livro “Pais desnecessários, filhos independentes”, recém-lançado pela editora Gente.
Administradora de empresas com MBA em Gestão Estratégica de Negócios, a autora afirma que cada passo que as crianças e os jovens dão por conta própria sedimenta um caminho mais sólido, que vai ajudá-los a desenvolver habilidades empreendedoras para se tornarem adultos responsáveis, resolutivos e mais felizes.
“Se você protege demais ou entrega tudo de mão beijada, por exemplo, vai dificultar o desenvolvimento de algumas competências fundamentais para a vida, como autorresponsabilidade, comprometimento, autonomia e autoconfiança. E isso só dificulta a vida dos filhos no futuro, pois eles serão cada vez mais dependentes dos pais”, afirma.
Lina Valléria acaba de lançar o livro “Pais desnecessários, filhos independentes” (Divulgação)
Nessa entrevista, Lina, que também se apresenta como palestrante e mentora, fala sobre esse modelo de educação que, nas palavras dela, torna os pais “facilitadores do crescimento”, em vez de controladores. Confira.
Crescemos ouvindo na escola, na igreja, na família que os pais são “necessários”, “imprescindíveis”, “indispensáveis”... E seu livro traz uma expressão corajosa – para alguns adultos, talvez desconfortável – que é a dos “pais desnecessários”. Afinal, o que abrange esse conceito?
O nosso amor, presença e apoio sempre serão necessários, porém a nossa maior função enquanto pais é preparar os nossos filhos para a vida. Para que isso se concretize é necessário que eles precisem cada vez menos de nós, que consigam assumir suas responsabilidades e tomarem as próprias decisões.
Que vantagens a postura “desnecessária” dos pais traz para os filhos? E para os próprios pais?
Para os filhos, essa abordagem promove a autonomia, a capacidade de enfrentar desafios de maneira independente. Aos poucos eles aprendem a tomar decisões por conta própria, a assumir as suas responsabilidades e a não culpar outras pessoas pelos seus resultados. Como consequência, tornam-se cada vez mais independentes e autoconfiantes.
Acredito que, para os pais, primeiro traz uma realização e tranquilidade em perceber que o filho está cada vez mais independente, pois não estaremos sempre por perto. Muitos adultos andam extremamente sobrecarregados e essa autonomia dos filhos diminui o estresse em casa, pois não é necessário cobrar o cumprimento das mesmas tarefas todos os dias.
Isso nos permite confiar no preparo que demos aos nossos filhos e acreditar que eles estão prontos para navegar em suas próprias jornadas. Também fortalece um relacionamento baseado na confiança mútua e no respeito, onde os pais se tornam facilitadores de crescimento, em vez de controladores.
Como encontrar a medida para ser um “pai desnecessário” sem parecer omisso ou negligente com a educação e o cuidado dos filhos?
Ser pais desnecessários não significa falta de limites, abandono, distanciamento ou colocar os filhos em risco. Muito pelo contrário. É dar espaço, permitir que os filhos tomem decisões proporcionais à sua idade, que errem e que aprendam com os erros, tendo o apoio dos pais. É preciso ter conversas mais transparentes, deixar claro o que precisa mudar e por que precisa mudar. E monitorar constantemente. Afinal, mudança de comportamento só acontece com constância.
Essa postura de “pai desnecessário” independe de classe social ou situação financeira?
Sim, é uma postura que vale para todas as famílias. Durante todos esses anos conversei com pais de diversas classes sociais com problemas muito semelhantes. Também já conduzi trabalhos com professores de escolas pública e privada.
É possível para pais que já têm filhos crescidos, criados num modelo superprotetor, “virar a chave”? Como dar essa guinada e incentivar a autonomia dos filhos?
Primeiro, é preciso que os pais entendam que a falta de autonomia vem muito da forma como eles lidam com os filhos. Sempre é possível fazer melhor, ajustar condutas e alinhar responsabilidades. Porém, quanto mais tarde, mais difícil. Crianças e adolescentes têm muito mais facilidade para mudar comportamento do que os adultos. Quando os filhos já estão adultos, a decisão é com eles e a influência dos pais é muito pequena. Por isso, meu programa é desenvolvido especialmente para pais com filhos entre 6 e 16 anos.
Se os filhos já estão crescidos, uma boa conversa transparente é necessária, para que eles entendam que algumas coisas vão mudar porque precisam mudar. É necessário incentivar e estimular esses jovens a se movimentarem. É provável que haja, no início, um incômodo para ambos os lados, mas o processo, para trazer resultado, precisa ser sustentado pelos pais. Nunca é tarde demais! E outra coisa, não se culpem pelo que já passou. Todos nós erramos enquanto pais, o que importa é o daqui para frente.
Que condutas do dia a dia boicotam a independência dos filhos e podem ser transformadas? Pode nos dar exemplos?
É muito comum que os pais superprotetores não permitam que os filhos vivenciem a frustração. Diante de uma situação negativa procuram sempre compensar de alguma forma, muitas vezes com presentes. Nenhum pai quer ver o filho triste, porém o mais importante nesses momentos é apoiá-lo e permitir que ele enfrente a situação, que busque as soluções. Essa experiência é fortalecedora.
Outro exemplo são os pais que ajudam os filhos no “dever de casa” e alguns que até fazem as atividades por eles. Esses pais, apesar de bem intencionados, estão tirando a oportunidade dos filhos desenvolverem várias características, como autorresponsabilidade, disciplina e autoconfiança. Minhas sugestão é que conversem com os filhos e mostrem que eles conseguem, que essas atividades são de responsabilidades deles. Você estará ali para apoiar, mas não para fazer por eles, ainda que em alguns momentos pareça mais rápido e prático assumir aquela tarefa.
No livro, você lista seis competências empreendedoras na educação dos filhos. Pode, de forma sucinta, nos explicar quais são?
Priorizei essas características porque acredito que elas transformam a vida de todas as pessoas, em todas as fases da vida. São: autorresponsabilidade, que é assumir as consequências dos seus atos e resultados, sem buscar culpados externos; comprometimento, o que significa dedicar-se e cumprir com as responsabilidades e acordos assumidos; disciplina, manter a constância e o foco nas tarefas, mesmo diante de distrações ou falta de vontade imediata; proatividade, que é tomar a iniciativa, agir antecipadamente e buscar soluções sem precisar ser instruído; autonomia, a capacidade de tomar decisões e gerenciar-se por conta própria, sem depender de supervisão constante; e autoconfiança, que é acreditar na sua própria capacidade de realizar, aprender e superar obstáculos.
Hoje muito se fala sobre a suposta fragilidade e insegurança da geração Z. É possível para um chefe, um gestor, despertar a autonomia, a disciplina, o comprometimento desses jovens? Ou essa é uma batalha que só se ganha em casa?
Sem dúvidas, o ambiente de casa é fundamental para o fortalecimento dessas características. Para chefes e gestores, pode ser difícil, mas não é impossível estimular o desenvolvimento desses comportamentos, desde que o jovem esteja disposto a trilhar esse caminho.
Discurso comum da geração Z é a vocação empreendedora. No entanto, em muitos casos o aporte financeiro vem dos pais, faltam disciplina, comprometimento... Como fazer essa conta fechar?
Essa geração tem muitos pontos fortes, como a vocação empreendedora, a criatividade e a inovação. No entanto, essas vantagens dificilmente se sustentam sem resiliência, comprometimento e autorresponsabilidade. Por isso, é preciso que os pais estimulem os filhos a se movimentarem, a buscarem soluções. Podem sim contribuir e apoiar, mas não resolver por eles, porque estarão adiando e aumentando um problema que é a dependência.
O senso comum costuma associar superproteção com amor. Mas, no livro, você defende que o modelo dos pais desnecessários traz mais leveza para a família e fortalece a conexão com os filhos. Como isso é possível?
Não tenho dúvidas de que os pais que protegem muito também amam os seus filhos. A grande questão é agir intencionalmente, com o objetivo de desenvolver nos filhos essas características. Isso os torna mais confiantes, felizes e realizados.
Quando os filhos desenvolvem esses comportamentos, eles assumem e desempenham suas responsabilidades, tornando o ambiente de casa muito mais leve.
Além disso, quando agimos com intenção, estamos mais presentes e saímos do automático, proporcionando um diálogo mais aberto com os filhos, fortalecendo a confiança nesse relacionamento e aumentando a conexão com eles. Sem dúvidas, é uma jornada maravilhosa!