Bióloga mineira assume presidência da entidade mais antiga das Américas voltada à entomologia, a Entomological Society of Washington (ESW)
O que você pensa quando vê um inseto? Se a resposta se resumir a medo ou a associação a doenças, é preciso rever os conceitos. Esses bichinhos desempenham papel primordial para o equilíbrio do ecossistema.
E quem sabe de cor e salteado a importância dos animais invertebrados é a pesquisadora mineira Talitta Simões, de 40 anos, que acaba de assumir a presidência da Entomological Society of Washington (ESW). A entidade, criada em 1884, é mais antiga das Américas no que diz respeito aos estudos da entomologia.
Talitta é a primeira não-americana a assumir o cargo. “Estar aqui, como brasileira, representa algo muito profundo. Às vezes, a ficha demora a cair”, conta a bióloga, doutora em entomologia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Atuando na área há duas décadas, Talitta Simões bateu um papo com o Hoje em Dia, abordando vários assuntos, como o desafio de estar à frente da ESW nos Estados Unidos e as importantes pesquisas em andamento no Brasil e no mundo, caso do uso de insetos geneticamente modificados para o controle de doenças.
Talitta Simões é egressa do programa de pós-graduação em Entomologia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) (Arquivo pessoal)
Você é a primeira não-americana a assumir a presidência da Entomological Society of Washington (ESW). Uma grande realização e também grande responsabilidade. A ficha já caiu?
Sim, certamente é uma grande realização. Na verdade, outras pessoas que não nasceram nos Estados Unidos já foram presidentes antes de mim, mas todas possuíam dupla cidadania. No meu caso, estar aqui, como brasileira, representa algo muito profundo. Às vezes, a ficha demora a cair. Quando cheguei aqui, há oito anos, carregava um sentimento de inferioridade muito forte. Mesmo sendo respeitada profissionalmente, o fato de estar cercada de entomólogos que escreveram os livros e artigos que eu lia desde a graduação me fazia duvidar do meu lugar aqui. Sentar ao lado deles para um café parecia surreal. E a barreira do idioma só aumentava essa distância. Com o tempo, fui fingindo costume, buscando meu espaço, tropeçando, aprendendo. Hoje, quando vejo eles se esforçando para pronunciar meu nome corretamente, com cuidado e respeito, é aí que me dou conta de tudo o que aconteceu. E que, sim, eu pertenço a esse lugar.
No Brasil muitas mulheres ainda sofrem preconceito ao ocupar cargos de liderança. Como está sendo em Washington?
Apesar de eu ainda enfrentar algumas barreiras extras aqui, por ser estrangeira, latina e mulher, sinto que dentro da minha bolha as coisas não são tão difíceis quanto em outros contextos. Na Entomological Society of Washington, por exemplo, temos um código de conduta que todos os membros precisam seguir, que reforça o respeito mútuo independentemente de gênero, raça, nacionalidade, orientação sexual ou qualquer outra característica. Isso cria um ambiente mais acolhedor e seguro. Mas sei que essa não é a realidade para muitas mulheres, no Brasil e no mundo. Infelizmente, o preconceito ainda existe em muitos espaços, e não são raros os casos em que mulheres têm sua competência questionada apenas por serem mulheres. Mesmo aqui, percebo sutilezas.
Felizmente, dentro do comitê executivo da Sociedade, sempre fui tratada com respeito e acolhimento. Reconheço o quanto isso é importante e gostaria que mais mulheres, em qualquer lugar, tivessem essa mesma experiência. Ainda temos muito caminho pela frente, mas é possível avançar quando há compromisso coletivo com a equidade.
De forma resumida, qual será o seu papel na ESW?
A ESW é a sociedade entomológica mais antiga das Américas e uma organização não governamental voltada à promoção do estudo da entomologia em todos os seus aspectos, tanto científicos quanto educacionais. Como presidente, comando as reuniões mensais da Sociedade e também lidero a diretoria executiva. Por ser uma instituição tão tradicional, seguimos um formato bastante formal e cerimonial. Eu uso, por exemplo, um gavel, aquele pequeno martelo de madeira, para abrir e encerrar sessões ou para chamar à ordem. As discussões ocorrem de maneira estruturada: para alguém falar, é preciso apresentar uma moção (uma proposta formal), que deve ser secundada por outra pessoa, discutida e, então, colocada em votação. Além das reuniões abertas a todos os membros, na diretoria executiva, coordeno a tomada de decisões estratégicas e administrativas da sociedade, que incluem orçamento e finanças, organização de eventos e atividades, nomeações, comissões, políticas internas e outros aspectos essenciais para o bom funcionamento da ESW.
Como surgiu o interesse pela entomologia?
Quando eu cursava Biologia na extinta Faculdades Integradas de Cataguases, tive a sorte de contar com uma mentora excepcional, a doutora Georgina Faria-Mucci, que me abriu as portas para o mundo dos insetos ao me oferecer uma oportunidade de estágio nessa área. Durante esse estágio, fui apresentada à imensa diversidade, complexidade e importância dos insetos para os ecossistemas. Fiquei fascinada com as inúmeras formas, comportamentos e adaptações dessas criaturas tão pequenas e, ao mesmo tempo, tão essenciais para a vida na Terra. Esse contato inicial despertou uma paixão que só cresceu ao longo dos anos, fazendo com que eu me dedicasse cada vez mais à entomologia, uma ciência que me encanta pela riqueza e pela contribuição que os insetos oferecem para a natureza e para a humanidade.
Sempre que se fala em insetos, muita gente já pensa em mosquitos e pragas, quase sempre associados a doenças. Por que a maioria da população ainda não sabe a importância dos insetos para o equilíbrio do ecossistema? E qual seria esse papel?
Com certeza, os insetos que causam problemas acabam recebendo mais atenção, e por isso muita gente associa insetos a algo negativo. Porém, eles representam apenas uma pequena parte de uma classe incrivelmente diversa e essencial para a vida no planeta. Hoje em dia, muitas pessoas já sabem que sem os insetos perderíamos boa parte dos alimentos que consumimos, porque eles são responsáveis pela polinização, um dos serviços ecossistêmicos mais importantes. Além disso, os insetos desempenham um papel fundamental na decomposição da matéria orgânica e no equilíbrio das cadeias alimentares.
Quando começamos a observar os insetos com mais curiosidade e menos repulsa, o medo dá lugar à admiração. E é nesse momento que nasce o verdadeiro interesse por essas criaturas tão fascinantes.
É possível mudar essa percepção? Como?
Com certeza. E isso já vem acontecendo, embora ainda de forma lenta. A chave está na educação e na divulgação científica acessível, que mostrem o fascinante mundo dos insetos de forma positiva e envolvente. Quando as pessoas descobrem, por exemplo, que as abelhas não são apenas “insetos que picam”, mas também responsáveis por boa parte dos alimentos que chegam ao nosso prato, essa visão começa a mudar. A mesma lógica vale para formigas, besouros, borboletas, joaninhas, grilos. O olhar muda quando a informação é correta e desperta curiosidade. Outro fator poderoso é o contato direto com a natureza. Crianças que têm a chance de observar insetos com liberdade e sem medo costumam crescer com mais respeito e interesse por esses organismos. Mas talvez a forma mais efetiva de provocar uma mudança mais ampla seja o impacto econômico.
Qual a importância do estudo dos insetos, de modo geral?
O estudo dos insetos é essencial porque eles desempenham papéis-chave no equilíbrio dos ecossistemas. Polinizam plantas, reciclam nutrientes, controlam populações de pragas e servem de alimento para diversos organismos. Além disso, conhecer melhor os insetos permite avanços no combate a doenças, na agricultura sustentável e na conservação da biodiversidade. Em resumo, entender os insetos é entender o funcionamento da natureza e, por consequência, garantir a nossa própria sobrevivência.
Que linhas de pesquisa científica em andamento atualmente você destacaria? Por quê?
Uma das linhas mais urgentes e relevantes atualmente é o monitoramento do declínio global de insetos. Trata-se de um esforço internacional que busca entender como, onde e por que as populações de insetos estão diminuindo e o que isso significa para os ecossistemas e para nós. Essa linha se conecta a temas críticos como perda de biodiversidade, mudanças no uso da terra, impactos das mudanças climáticas, segurança alimentar e saúde pública. Muitos insetos têm papéis ecológicos insubstituíveis: são polinizadores, recicladores de matéria orgânica, controladores naturais de pragas e alimentos fundamentais para inúmeros outros organismos. Quando suas populações entram em colapso, há um efeito cascata que pode comprometer o equilíbrio de todo o sistema. Além disso, muitas espécies estão desaparecendo antes mesmo de serem descritas pela ciência, o que agrava ainda mais a chamada “extinção silenciosa”. Esse tipo de pesquisa envolve abordagens interdisciplinares, como armadilhas padronizadas de longo prazo, análise de séries temporais, genômica, metabarcoding, e o uso de coleções científicas como linhas de base históricas. É um campo em rápida evolução e absolutamente crucial para entendermos o futuro da biodiversidade no planeta.
Há alguma no Brasil particularmente importante?
Com certeza! O Brasil, por ser um país megadiverso e com grande peso no agronegócio, tem algumas linhas de pesquisa em entomologia especialmente relevantes. Uma delas é o controle biológico de pragas, que busca usar inimigos naturais dos insetos, como parasitoides e predadores, para combater pragas agrícolas. Isso é super importante para reduzir a dependência de agrotóxicos, diminuindo o impacto ambiental e promovendo uma agricultura mais sustentável. Outra frente que tem ganhado destaque é o uso de insetos geneticamente modificados para o controle de doenças.
Diante dos desafios ambientais e da necessidade de buscar soluções mais sustentáveis, pesquisadores brasileiros vêm investigando o potencial de criar insetos para alimentação humana e animal. Essas linhas de pesquisa são especialmente importantes não só para resolver questões locais, mas também porque podem servir de modelo para outros países, já que o Brasil reúne uma combinação única de alta biodiversidade, desafios socioambientais complexos e historicamente produz trabalhos cientificos de altisima qualidade.
Quais os principais desafios nas pesquisas envolvendo insetos no mundo? E no Brasil?
Um dos maiores desafios globais é a falta de investimento em pesquisa básica. Existe uma tendência de priorizar projetos com aplicação imediata, enquanto áreas fundamentais como taxonomia, ecologia e biogeografia ficam de lado, mesmo sendo justamente essas que nos ajudam a entender a biodiversidade e como protegê-la. Além disso, as mudanças climáticas e a destruição de habitats estão impactando populações de insetos num ritmo acelerado. Em muitos casos, as espécies estão desaparecendo antes mesmo de serem descritas pela ciência. É literalmente uma corrida contra o tempo. No Brasil, tudo isso se soma a entraves locais. A burocracia para coletar, transportar ou enviar material biológico para fora do país ainda é um grande empecilho, o que atrasa parcerias e projetos com alcance internacional.
Apesar dos obstáculos, o país tem uma comunidade científica extremamente qualificada e centros de excelência em entomologia. O desafio é garantir condições para que essa ciência floresça e tenha o reconhecimento que merece.
A dengue é considerada um problema de saúde pública no Brasil, e mais recentemente a febre oropouche vem ganhando espaço no noticiário. Como pesquisas científicas sobre insetos vetores podem ajudar no combate a essas doenças?
As pesquisas com insetos vetores são essenciais no enfrentamento de doenças como dengue, febre amarela, chikungunya, zika e, mais recentemente, a febre oropouche. Elas permitem compreender os ciclos de vida desses vetores, seus hábitos alimentares, áreas de ocorrência, dinâmica populacional e fatores ambientais que favorecem sua proliferação. Essas informações são cruciais para criar estratégias de vigilância e controle mais eficazes, específicas e ambientalmente sustentáveis. No caso do Aedes aegypti, vetor da dengue, os avanços científicos possibilitaram o desenvolvimento de soluções inovadoras, como a liberação de mosquitos infectados com a bactéria Wolbachia, que reduz a capacidade de transmissão do vírus, e de linhagens geneticamente modificadas para diminuir as populações naturais. Essas estratégias se somam a campanhas de educação ambiental, ao monitoramento em tempo real e ao uso de inteligência artificial para prever surtos com base em variáveis climáticas e demográficas. Já no caso da febre oropouche, os desafios são maiores. Ainda há lacunas importantes no conhecimento sobre seus vetores e sua ecologia. Pesquisadores trabalham para identificar com precisão as espécies envolvidas na transmissão e estudar sua biologia e distribuição. Ferramentas moleculares vêm sendo empregadas para detectar a presença do vírus em populações naturais, o que pode orientar ações de vigilância e resposta mais rápidas, especialmente em áreas remotas ou de difícil acesso. Esse tipo de pesquisa exige investimento contínuo, infraestrutura adequada e colaboração entre diferentes áreas do conhecimento, incluindo entomologia, virologia, ecologia, saúde pública e tecnologia da informação.
Você tem acompanhado o debate no Congresso Nacional em torno do chamado PL da Devastação no Brasil, que visa facilitar as licenças ambientais para grandes empreendimentos? A mudança na legislação poderia ter impacto sobre o papel dos insetos na natureza?
Não tenho acompanhado de perto esse debate específico no Congresso, mas de forma geral, qualquer mudança na legislação ambiental que reduza a exigência de estudos e licenças pode, sim, impactar os insetos e os ecossistemas como um todo. Insetos desempenham funções ecológicas essenciais, como a polinização de plantas, a decomposição de matéria orgânica e o controle natural de pragas. Essas funções muitas vezes passam despercebidas, mas são vitais para a manutenção da biodiversidade e até para a agricultura e o abastecimento de água.
Estudos de impacto ambiental bem conduzidos ajudam justamente a prever esses efeitos e a propor medidas de mitigação. Por isso, independentemente do conteúdo do projeto de lei, o ideal é que decisões envolvendo áreas naturais sempre considerem dados científicos atualizados e análises ecológicas detalhadas, inclusive com atenção especial aos insetos, que muitas vezes não são foco principal desses estudos, mas têm um papel ecológico central.
Ainda no Congresso, recentemente uma audiência com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, debateu a análise e o controle ambiental dos agrotóxicos em uso no país. Você defende mudanças no uso de agrotóxicos no Brasil?
Não estive a par dessa audiência em específico, mas o tema do uso de agrotóxicos é bastante relevante e constantemente discutido na comunidade científica. Há uma preocupação crescente com os impactos desses produtos sobre organismos não-alvo, especialmente insetos que prestam serviços ecológicos importantes, como polinizadores e agentes de controle biológico. Diversas pesquisas mostram que o uso intensivo ou inadequado de agrotóxicos pode comprometer o equilíbrio dos ecossistemas, afetar a produtividade a longo prazo e até causar o desaparecimento de espécies fundamentais para a agricultura. Nesse contexto, avanços em práticas como o manejo integrado de pragas e o uso de agentes biológicos oferecem caminhos mais equilibrados entre proteção de cultivos e conservação ambiental.