Entrevista

‘Escolas se enfeitam de tecnologias, sem intensificar comunicação’, analisa o pedagogo José Pacheco

Educador português que defende aprendizagem com autonomia diz que mau uso da internet fomenta ignorância e solidão

Agência Brasil
Publicado em 31/07/2023 às 07:00.
 (Eduko/Divulgação)

(Eduko/Divulgação)

Passar da instrução para a aprendizagem é o resumo da proposta que tornou a Escola da Ponte, em Portugal, uma experiência inovadora de educação pública. Fundada em 1976, a instituição de ensino busca dar protagonismo ao aluno e ao processo de aprendizado, que se torna, ao mesmo tempo, mais autônomo e mais coletivo.

A experiência da Escola da Ponte inspirou outras instituições de ensino ao redor do mundo – inclusive no Brasil, onde o pedagogo português José Pacheco chegou a participar da criação do Projeto Âncora, fundado no interior de São Paulo, em 1995.

Palestrante da primeira edição da Eduko, Bienal de novos saberes, realizada na última sexta-feira (28) e sábado (29), em Belo Horizonte, José Pacheco reflete sobre tecnologia, diversidade e a educação do futuro. O evento é realizado por Sesc, Sistema Comércio MG e Senac.

“Os professores do futuro irão manter-se ancorados em aulas obsoletas servidas em lousas digitais? Irão replicar o planejamento de aulas congeladas no YouTube ou em tablets? Ou usar o digital a serviço da humanização da escola? Essa é a pergunta central. Não sou catastrofista, vejo tudo com o copo meio cheio. Mas as escolas têm se enfeitado de novas tecnologias sem intensificar a comunicação e a pesquisa. Pelo contrário, o modo como utilizam a internet fomenta a imbecilidade, a ignorância e a solidão”, define.

Nesta entrevista, o idealizador da Escola da Ponte, educador, antropólogo e cientista da Educação vê a educação pautada pela competição e individualidade como uma das causas de conflitos sociais, extremismo e violência nas escolas. E na sala de aula tradicional, defende, é impossível se pensar em um trabalho pautado na coletividade. 

As tecnologias de informação e comunicação são incontornáveis, mas a escola precisa ser reinventada. Não adotar robôs e uma inteligência artificial que, dos Estados Unidos, transmite conteúdo para o cérebro.

A sua concepção do que deveria ser a Escola da Ponte mudou ao longo do tempo? Como a prática cotidiana impactou suas ideias?

A Escola da Ponte foi a primeira escola, no contexto da rede pública de educação, que operou a transição entre o paradigma da instrução, o trabalho centrado no professor, para o paradigma da aprendizagem, o trabalho centrado no aluno enquanto sujeito de aprendizagem. Foi a primeira no ensino fundamental, e, em 1976, foi inovadora, porque cumpriu os cinco critérios que definem inovação: ser efetivamente inédita, ser sustentável na lei e na ciência, ser replicável, ser útil e estar sempre em fase instituinte. A inovação é algo instituinte, não pode parar de inovar. E o que aconteceu na Escola da Ponte é que parou de inovar. É a melhor escola do meu país, é uma das melhores escolas do mundo, no mundo da educação, claro, mas ela cristalizou. É um objeto de turismo educacional.

Você idealizou um projeto de educação pautado pela coletividade em um tempo em que o individualismo parece cada vez mais exacerbado. Que resposta a educação deve oferecer a esse movimento, na sua visão?
Edgar Morin (antropólogo, sociólogo e filósofo francês) diz-nos que a modernidade nos confinou numa ética individualista que nos impede de pensar a responsabilidade por atos coletivos. E é isso que a escola da modernidade concretiza quando o professor está solitário na sala de aula e não é autônomo, e não ensina o que diz, transmite aquilo que é. Transmite heteronímia a uma audiência formal e o mesmo está sujeito a uma hierarquia explícita na sala de aula. É impossível pensar-se num trabalho pautado na coletividade. A sala de aula, como dispositivo central do paradigma da instrução, deverá ser extinta, pura e simplesmente, porque o que importa a saber é que alguns autores do século 20, e vou citar apenas dois ou três, Agostinho da Silva, Lauro de Oliveira Lima, Paulo Freire, que é incontornável. Mas um Freire que seja efetivamente cumprido, porque o que acontece hoje nas propostas, teorizações e teorias é algo que eu chamo de freirianos não praticantes. São teoricistas que falam de uma nova educação, falam em nome de Paulo Freire, mas fazem educação bancária, o que é contraditório, e até antiético, mas ficamos por aí. O que fazemos, a práxis, é criar os círculos de aprendizagem, o que é efetivamente uma inovação. E os círculos de aprendizagem dão origem a uma nova construção social, porque há várias. E essa nova construção são protótipos de uma comunidade de aprendizagem. Em vários países acompanho a evolução desse projeto de criação de uma nova construção social. Não é mais um paliativo, não é mais um ensino híbrido, nada disso. É uma nova construção social que irá ao longo dos anos substituir aquela que vem da Prússia militar do Século 18 e da Inglaterra da Primeira Revolução Industrial.

Internet não é uma ferramenta, é uma sociedade, e é generosa na oferta de informação, mas os professores do futuro irão manter-se ancorados em aulas obsoletas servidas em lousas digitais?

Acompanha experiências similares à sua no Brasil? Como vê a aplicabilidade desse método em realidades socioeconômicas diferentes de da cidade do Porto?
Quando me foi pedido que fizesse o projeto âncora, tive o cuidado de entrar nas favelas que rodeavam esse projeto e vivenciar aquilo que lá acontecia. Partindo do princípio que escolas não são prédios, são pessoas, e as pessoas são os seus valores, eu encontrei nas favelas, se nos abstrairmos do tráfico e das milícias, a matriz axiológica da Escola da Ponte, os valores. O valor da solidariedade, da responsabilidade e da autonomia. É muito claro nos favelados essa tripla dimensão axiológica. E tive o cuidado também de, enquanto europeu, correndo risco de etnocentrismo, ir às comunidades dos povos indígenas. Estive um tempo entre os pataxós, outro tempo entre os tupinambás e outro tempo entre os xavantes. Depois, fui aos quilombos. Fui a um quilombo do Campinho. Fui a um quilombo em Goiás, estive em vários, e encontrei a tradução clara daquilo que é o provérbio africano de que é preciso uma tribo inteira para educar uma criança. Depois dessas experiências, costumo dizer que quanto mais eu conheço o Brasil menos entendo, mas isso se deve ao caldo cultural em que o Brasil está imerso. A origem portuguesa, japonesa, alemã, italiana e tantas outras de imigrantes que trouxeram toda a sua criatividade e é muito difícil pensar uma Escola da Ponte, mas é possível partir do exemplo da Escola da Ponte, para, aplicando com toda a reserva e cuidado à América do Sul, fazermos aquilo que há muito tempo este lugar reclama, que é uma escola, uma educação, na medida dos povos pré-colombianos, juntando cultura e miscigenação.

Sua experiência na Escola da Ponte já atravessa diferentes gerações de crianças. Como tem acompanhado o impacto da tecnologia nas gerações atuais? Quais consequências vê e como lidar com elas?
Quando, há 50 anos, perguntava aos alunos o que queriam ser, diziam que queriam ser jogadores de futebol, aeromoças etc. Quando hoje eu pergunto, primeiro eles respondem perguntando: eu posso dizer? Porque já destruíram a curiosidade e os proibiram de fazer perguntas. Eu digo que sim. E eles dizem que querem ser influencers, youtubers etc. E o que eu quero dizer com isso? As tecnologias de informação e comunicação são incontornáveis, mas a escola precisa ser reinventada. Não adotar robôs e uma inteligência artificial que, dos Estados Unidos, transmite conteúdo para o cérebro. Do modo como as novas tecnologias estão sendo introduzidas em algumas escolas, temo que se converta em mais alguma panaceia. Que sejam acriticamente consumidas, sem resquícios de uma cooperação necessária e dependentes de vínculos afetivos precários que são estabelecidos com identidades virtuais. Internet não é uma ferramenta, é uma sociedade, e é generosa na oferta de informação, mas os professores do futuro irão manter-se ancorados em aulas obsoletas servidas em lousas digitais? Irão replicar o planejamento de aulas congeladas no YouTube ou em tablets? Ou usar o digital a serviço da humanização da escola? Essa é a pergunta central. Não sou catastrofista, vejo tudo com o copo meio cheio. Mas as escolas têm se enfeitado de novas tecnologias sem intensificar a comunicação e a pesquisa. Pelo contrário, o modo como utilizam a internet fomenta a imbecilidade, a ignorância e a solidão.

Os ataques violentos a escolas têm crescido no Brasil, muitas vezes associados a grupos de ódio nas redes. Como sua proposta pedagógica pode contribuir para o enfrentamento desse problema?
Na escola de Bambini, em 1907, Maria Montessori dizia que a escola que estimula a competitividade negativa é a origem remota de todos os conflitos de todas as guerras. Não espanta, infelizmente, os ataques que as escolas têm sofrido e as mortes que têm acontecido. Quando vou até uma escola que carece de um ambiente de sociocracia, de um ambiente democrático, a primeira coisa que fazemos é criar alguns dispositivos de relação, entre os quais os acordos de convivência, o quadro de direitos e deveres, a assembleia, a comissão de ajuda, a caixa de segredos. E essa organização, muito até neobehaviorista, que condiciona todo o trabalho feito a jusante. Um dia, me levaram à Papuda (presídio no Distrito Federal), à aula de jovens infratores, e nem consigo descrever a tragédia que lá observei. E o secretário de educação do Distrito Federal pediu para eu fazer um projeto para aqueles jovens, e eu disse que poderia tentar desde que conhecesse a origem desses jovens e estabelecesse contatos com as famílias, quase todas monoparentais, mas que estava mais interessado em preparar um projeto que evitasse a nossa sociedade de ver uma Papuda, de ver violência, ou seja, trabalhar a montante para não arranjar improvisos de solução a jusante.

A educação antirracista, pró-equidade de gênero e inclusiva a respeito das diversidades sexuais é uma pauta progressista com cada vez mais relevância. Quais contribuições a Escola da Ponte pode dar nesse sentido?
Quando me perguntam se a minha escola é inclusiva, respondo que é uma escola a caminho da inclusão. Porque não há escolas inclusivas nem há escolas inovadoras. Há um tempo ouvi um discurso de uma muito conhecida palestrante que falava sobre escolas inclusivas e inovadoras, e, no final, com todo respeito, perguntei pelo endereço de uma dessas escolas e ela não soube dar. Estamos a falar de que? Enquanto a escola continuar a ser o que é, enquanto não se juntar aquilo que é útil no paradigma da instrução, no paradigma da aprendizagem e no paradigma da comunicação, enquanto não se tomar um compromisso ético com a escola e com a vida. Porque se o professor dá aula e não ensina a todos os alunos, e se continuar dando a aula, ele não é um professor, é um crápula, porque sabe que está a semear ignorância. Então, é preciso criar condições para que se cuide dos professores para que eles possam tomar uma decisão ética, um compromisso ético com a educação. A partir daí essas questões de gênero, de inclusão e de diversidade, tudo isso é sublimado.

Vemos uma certa desvalorização do ensino formal e das carreiras tradicionais nas redes sociais, que apontam para um modelo de sucesso capitalista agora mais pautado pelos influenciadores, coaches, investidores de cripto e outros grupos. Como isso impacta a educação de hoje e do futuro, na sua visão?
Influenciadores, coaches, investidores etc. Tudo isso irá parar no saco de lixo da história da educação. São fenômenos de passagem. Falar da educação do futuro é falar de que, se considerarmos que mais de 80% dos empregos atuais não existirão dentro de 10 anos. Penso que vai ser antes. Um dos quais é o professor de sala de aula. Quando fui dar aula, sabia muito da minha área, de eletrotécnica, não sabia ser professor, sabia dar aula. E não sabia que estava a desvalorizar a minha própria profissionalização. Todos esses coaches irão desaparecer assim como irá desaparecer a mercantilização da escola pública, que está em curso. As modas pedagógicas duram enquanto duram, então, não me preocupa muito a desvalorização do ensino formal, até porque não falo de ensino formal. Por que há ensino formal e informal, educação ambiental, educação para a saúde, educação infantil, educação fundamental? Educação é uma só.

Brasil, Portugal e muitos outros países viveram uma ascensão de uma extrema direita muito pautada pela desinformação e pela rejeição do outro. Há quem diga que a solução está na educação. O que acha?

José Pacheco: Há uma extrema direita em Portugal que já ocupa o terceiro lugar em votação e realmente está em crescimento. Já há xenofobia, já existe perseguição, e isso é uma consequência do modelo educacional em que vivemos. A desinformação e a rejeição do outro surgem como um dos efeitos nefastos do modelo educacional do século 18. Costumo brincar que continuamos a ter alunos do século 21, com professores do século 20 a trabalhar como no século 19. Será necessário fazer uma grande transformação, operar mudanças e, sobretudo, inovar. É preciso ligar a escola com o poder público e a universidade. É preciso ligar a escola com as famílias e a sociedade. É preciso ligar a escola com a saúde pública e o ambiente, e arte e cultura. É preciso considerar que a escola não é o prédio, e que se aprende em qualquer lugar desde que aconteça vínculo entre o objeto significativo que se busca alcançar, através da busca da informação e construção do conhecimento, e a triangulação com um mediador que pode ser esse tal de coach, tutor e sei lá como chamar. E quando perguntas o que acha, peço desculpas, mas não posso achar. Sou formado em Ciências da Educação, e alguém formado em Ciências da Educação, o que é raro, não tem o direito de achar. Tem a obrigação de afirmar e fundamentar na ciência prudente aquilo que diz. Infelizmente, como diria Jean Piaget, a educação é a única área das ciências humanas em que todo mundo se considera especialista e no direito de dar opinião.

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