Chef Almir da Fonseca: alquimia culinária vai além dos temperos; confira entrevista

Patrícia Santos Dumont
pdumont@hojeemdia.com.br
26/05/2017 às 11:27.
Atualizado em 15/11/2021 às 14:43

Cinquenta e seis anos de idade, 36 de gastronomia, maior parte deles fora do Brasil. Cozinheiro renomado no exterior, com experiência em duas das mais tradicionais cozinhas do mundo – a francesa e a italiana – o chef carioca Almir da Fonseca conversou com o Hoje em Dia durante passagem rápida por Belo Horizonte. Talentoso, ele é também um pesquisador nato. “Conhecimento é inesgotável”, diz.

Ano após ano, a gastronomia vem ganhando um novo status, sobretudo em função dos programas de TV, cada vez mais numerosos. Aos cozinheiros, muitas vezes, acaba sendo atribuída uma função que os torna, não raro, profissional quase inatingível. Você concorda com essa afirmação? O que acha desses realities de culinária?
Está tudo errado. Não só o nome do programa, pois não são chefs, muito menos master, como o formato. Existem no mundo menos de 183 profissionais considerados Masterchef Worldwide. Para se chegar a esse nível, leva-se muito tempo. Esse tipo de show prejudica a gastronomia, torna nosso trabalho muito mais difícil. 

Por que?
Porque os garotos que os assistem têm a ideia de que serão famosos, mas veem, depois, quando estão na cozinha, que não é um trabalho de quatro horas por dia. É um trabalho de 16 horas por dia. Não existe esse glamour todo. 

Mas, na sua opinião, cozinhar é possível para todos?
Sim, desde que haja paixão. Paixão pelo profissionalismo, por pesquisar a comida, pois sem pesquisa, sem estudo, a comida não cria raízes que a conectem à cultura. É muito importante para todos os chefs saberem que é preciso entender a origem dos pratos, de onde vêm as técnicas. Saber porque cada cultura cozinha de uma forma. Saber porque os produtos se tornaram produtos daquele lugar. Entender o território onde cada produto nasceu.

O que é imprescindível para quem deseja se tornar um cozinheiro profissional e ser um chef de sucesso? 
Uma das coisas mais importantes é ter interesse, curiosidade pela cultura gastronômica. Sozinha, a palavra gastronomia significa o ensino e o aprendizado da arte culinária. Fundamental é não somente estudar as técnicas, mas as razões pelas quais elas existem. Estudar sobre como controlar o fogo, a água, o sal. Chefs de sucesso precisam ter essas qualidades. Precisam também ser bons em matemática, para saber comprar, fazer as fichas técnicas de uma receita, mostrar aos cozinheiros como utilizar os produtos. Se você quer ser um cozinheiro internacional, deve saber um pouquinho de inglês, a língua que conecta todos. E amar a alquimia da cozinha. Não somente gostar, mas amar, viver, respirar, sonhar, comer, cozinhar.Cristiano Machado

Durante passagem por Belo Horizonte, chef internacional, professor no Instituto de Culinária da América, nos Estados Unidos, deu aula vip para estudantes de gastronomia das Faculdades Promove

No universo da cozinha, teoria e prática têm o mesmo peso? 
Sim, completamente. Se um cozinheiro é mais teórico do que prático, ele não é cozinheiro, é um professor. Gostaria de ver quanto tempo os professores de uma escola de gastronomia que fechou durariam na cozinha, no mercado. Uma coisa que nossa escola não deixa é que os chefs percam a prática.

O Instituto de Culinária da América, nos Estados Unidos, onde você é chef instrutor, é uma das instituições mais respeitadas do mundo. A que você atribui essa qualidade? Como as aulas são ministradas lá e o que as torna tão especiais, diferentes de outros cursos pelo mundo?
Somos a única escola do mundo creditada como universidade, somos um colégio de gastronomia. Tudo o que é usado na cozinha é produzido lá. Trabalhamos e ensinamos de maneira sustentável. Somente depois de adquirir maturidade, cerca de três meses depois de ingressar, é que os alunos vão para a cozinha. 

Você fala muito sobre sustentabilidade na cozinha. Diria que esse é, hoje, o calcanhar de Aquiles da gastronomia, o ponto mais fraco?
Nos últimos 30 anos, a distância entre o chef e o produtor se tornou muito grande. Existe uma conveniência, uma demanda pelo que é industrializado. Muitas coisas afetaram essa relação. Nove entre dez cozinheiros nunca cortaram uma vaca por inteiro, só usam lombinho e outras partes nobres na feijoada. É isso o que quero mudar. Sou parte dos dinossauros e minha raça está extinta. Minha meta é proteger a carreira de chef para que as pessoas se graduem e permaneçam no ofício.

De onde vem sua inspiração? O que sai da sua cozinha?
Deixei o Brasil em 1978, há mais de 30 anos, e me tornei chef executivo. Minha experiência é na cozinha francesa, mediterrânea, porque fui treinado no Sul da França e da Itália. Mas tudo combina muito com a gastronomia brasileira. A nossa experiência culinária tem muita relação, assim como a cozinha do Norte da África, a portuguesa, a espanhola. Tudo tem uma combinação boa e essa é a maneira como fui treinado e cozinho. 

Como você avalia a culinária brasileira fora do Brasil? Ela é valorizada?
Completamente desrespeitada pelos brasileiros. Se você pergunta lá fora qual é a comida brasileira fala-se que carne no espeto é única coisa que conhecem. Nunca comeram bobó, nunca comeram moqueca. Uma vez ou outra ouviram a palavra feijoada, mas quando se coloca o pé ou o nariz do porco, ninguém come. Lombinho de porco na feijoada é como um carrinho de plástico. Se a gente deseja chegar ao ponto em que Portugal, Espanha, França e o Peru chegaram, precisamos proteger nossa cozinha, respeitá-la. Introduzi-la no mundo como um cartão-postal, um convite para que a pessoa pegue um avião e venha até aqui prová-la.

“Uma coisa que se fez mal aqui e que os países velhos estão à nossa frente nisso, é usar a palavra autêntico para descrever restaurantes que, na verdade, são inspirados”

Que tipo de culinária está em alta lá fora? 
A moda agora é a alta gastronomia, que significa alta qualidade, altas técnicas e produtos incríveis nas mãos de chefs que fazem coisas maravilhosas. A cozinha do Peru está muito popular no mundo inteiro, a da Espanha, sempre popular, do Sul da Itália e Sul da França. A cozinha do Brasil está começando a chegar na nossa conversa. O problema é que os brasileiros precisam identificar as cozinhas regionais de uma forma melhor e abraçá-la, amá-la, ao invés de tentar transformá-la em outra coisa. Precisamos ter orgulho da cozinha caipira, do produto de Belém, de Belo Horizonte, do produto do interior do Rio de Janeiro. Aproveitar pratos clássicos, que têm uma conexão com a cultura, e introduzir novas técnicas, de alta gastronomia. 

Então não é transformar nossa história, mas adaptá-la, lapidá-la? 
A gente não quer trocar nada. O que nos faz brasileiros somos nós mesmos. Precisamos abraçar nossa gastronomia e adorá-la da maneira como é. O que precisamos fazer é elaborar melhor, transformar e dar uma nova maquiagem, lapidar, envolver, crescer da maneira como o mundo gastronômico está crescendo, mas nunca perder o charme, o cheiro da nossa cozinha. 

Quando você está aqui, o que gosta de comer?
Quando vou ao Amazonas sempre tomo sopa de piranha para dar sorte. Também adoro pirarucu, bobó de camarão, moqueca e feijoada. Em Minas, gosto de um bom feijão tropeiro e adoro queijo com goiabada. 

Que contribuição você espera deixar para o Brasil e, claro, para a comida que é preparada pelos brasileiros? 
Quero ajudar muito. Quanto mais se debate a importância da conexão entre o chef e o produtor, mais protegemos a culinária. As companhias grandes, de produtos industrializados, estão tomando posse do mercado e o produtor, que trabalha a vida toda criando produtos de extrema importância, está desaparecendo. O chef que deixa de receber o produto do seu Zé porque talvez seja um pouco mais caro, mas de muito mais qualidade, não está ajudando ninguém. É preciso mudar esse cenário.

“Tudo passa por uma mudança cultural. Nós perdemos a geração do contato direto com o produtor. Temos que reeducar o consumidor e o sistema que compõe a gastronomia”
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