Claudão Pilha: 'Cultura, para esse governo, é mais supérfluo que gelo no Polo Norte'

Lucas Buzatti
lbuzatti@hojeemdia.com.br
04/08/2017 às 22:08.
Atualizado em 15/11/2021 às 09:56
 (Lucas Prates)

(Lucas Prates)

Em 2017, A Obra completou duas décadas de resistência cultural e fomento à produção musical independente de Belo Horizonte. Uma das casas de shows mais emblemáticas da cultura underground da cidade, o espaço incubou diversas bandas locais e recebeu atrações “indie” de diversos cantos do país e do mundo. 

Proprietário d’A Obra e importante agitador cultural da cidade, o músico e produtor Claudão Pilha conversou com o Hoje em Dia sobre os desafios de manter o espaço e as transformações na cena independente e no modus operandi do fazer artístico nos últimos 20 anos.

Antes d’A Obra, veio a sua banda, Os Meldas. Como era ter um grupo independente, de música autoral, nos anos 1980?
Os Meldas era uma banda muito louca. Foi mais ou menos nessa época que saiu o “Cabeça Dinossauro”, dos Titãs, e a música “Bichos Escrotos” era proibida de tocar em rádio porque tinha palavras de “baixo calão”. Nos Meldas, a gente falava muito palavrão nas músicas, éramos punks na atitude. Éramos os alternativos dos alternativos, porque muita gente, até da cena mesmo, virava o rosto para nós. E olha que a maior parte de nós na banda éramos mestrandos, doutorandos ou tínhamos licenciatura. Mas entre todas as bandas autorais da época, algumas dificuldades eram iguais: lugar pra tocar, acesso a instrumentos razoavelmente tocáveis, incapacidade de divulgação dos shows. Era tudo mais difícil que hoje, quando a gente pode gravar em casa com qualidade, enviar música e divulgar show pela internet.

Foi justamente a escassez de casas de pequeno porte voltadas para o autoral que fez com que você decidisse abrir A Obra. Como aconteceu?
Eu e o Marcelim, que tocou comigo em várias bandas, embarcamos nessa pela união de alguns fatores: a falta de espaço para tocar nossa música autoral na Zona Sul e o “faça-você-mesmo” do espírito punk do qual sempre fomos imbuídos. Pensamos: vamos fazer um bar onde possamos tocar a hora que quisermos e onde todo mundo que for legal possa tocar também.

Você se lembra do primeiro show que rolou n’A Obra? 
Claro que lembro. Foi no dia da abertura para o público, 23 de junho de 1997. Foi o primeiro show da minha então nova banda, o Estrume’n’tal, que era formada pela parte instrumental dos Meldas. A Obra abriu sem grana e não tínhamos mesa de som na abertura, então fez sentido ser uma banda instrumental, sem nada microfonado.

Quais eram, naqueles tempos, as principais dificuldades para se produzir shows e manter financeiramente uma casa de shows na Savassi?
As mesmas de hoje: falta de apoio financeiro, tanto público quanto privado, além de uma certa dose de preconceito com quem trabalha com música autoral, especialmente no rock. Temos 20 anos de funcionamento, nossos funcionários criaram suas famílias e construíram suas casas com o fruto do nosso trabalho conjunto, e tem gente que até hoje pensa que somos um bando de aventureiros inconsequentes e cabeludos de bermuda, que passam as noites bebendo e fazendo barulho. Não somos. Somos empresários sérios, que contribuíram com 20 anos de imposto de todo tipo.

Como observa as críticas de que Belo Horizonte não tem casas de pequeno e médio portes para atender a produção local? 
Eu acho que quem critica não dá o devido valor às casas. Não frequenta, não se vê como parte da cena, não acha importante participar, não vai a shows, não vê as bandas, não vai nas festas. Fala mal e depois fica todo triste porque a casa fechou, o jornal fechou, a banda acabou. A cena, para mim, é a união das casas, bandas, produtores, imprensa (grande, média e independente) e do público. Sem a participação engajada de todos esses elos, a corrente não é tão forte. Com 20 anos de Obra posso dizer que quem abre uma casa e permanece aberto é um guerreiro, porque as dificuldades são tantas que o simples fato de se manter aberto oferecendo música autoral para um mercado de pequeno e médio portes é por si só uma vitória. Ganhar dinheiro com isso beira o impossível. 


Acha que BH conseguiu vencer a hegemonia do cover, que ainda é uma cultura forte na cidade? 
De maneira nenhuma. BH é a capital mundial do cover. Aqui vem banda cover de outros estados tocar. Existem redes disso aqui, circuitos, como eles próprios se intitulam. Esse tipo de dificuldade de levar o trabalho autoral para frente, em vez de nos desanimar, nos dá mais força ainda. Porque eu penso assim: o que seria da música mundial, e principalmente o que seria das bandas cover, se o Elvis, o Pink Floyd, os Stones, os Beatles só tocassem cover? Pense nisso por um instante. Alguém tem que colocar a cara na frente pra mostrar o trabalho autoral, e se uma dessas pessoas tiver que ser eu, bem, que seja.

O que significam os 20 anos de Obra para a cultura de BH? Existe outra casa com essa longevidade? Quem mais você destaca nessa saga de resistência cultural das casas de shows? 
Os 20 anos de Obra nos mostra que sim, há espaço para a música autoral, para o trabalho musical de qualidade e para a educação musical nesta cidade. Outros participantes importantíssimos nesse processo são o Edmundo e Andrea, do Matriz. Nossos ídolos, que têm trabalhado consistentemente com a promoção da música autoral em BH há muito mais tempo que nós, desde o Calabouço, depois o Caverna, Butecário e, agora, o Matriz. E também a galera do metal e do punk rock de BH que, mesmo não tendo uma casa deles, sempre estão produzindo eventos em bares, sítios, e até na rua. Mais recentemente, a patota d’A Autêntica, que é uma casa sensacional, um verdadeiro presente para quem gosta de música autoral de qualidade na nossa cidade.

Temos visto novas casas, como A Autêntica, dando gás para abraçar a bandeira da música autoral. Qual o papel dos espaços de shows dentro da engrenagem de uma cena independente que ferve, como é a de hoje?
Como eu disse antes, todos os elos são necessários para que haja a corrente da cena musical autoral numa cidade. N’A Obra, a gente tem uma filosofia: a palavra concorrência significa correr com, e não correr contra. Portanto, a gente abraça novas iniciativas e trabalha junto com todo mundo que está disposto a levantar a bandeira da cultura musical autoral em BH. A ideia básica não é complicada: quanto mais casas de shows abertas, mais gente na rua, portanto mais gente nas casas de todo mundo, inclusive na nossa. É simples assim. Em 20 anos, já passamos por várias fases nas quais éramos a única casa desse segmento aberta em BH, e eu achava isso péssimo. Me lembro de uma vez, já havia uns seis meses que era só a gente aberto na cidade, e ouvi um casal comentar atrás de mim, n’A Obra, algo do tipo: “não aguento mais vir só neste lugar”. É muito mais legal quando temos muitas opções, e com a cena fervendo a aposta é que mais casas vão abrir.

Quais são os maiores desafios da cultura independente no Brasil atualmente? O que ainda é preciso melhorar? 
Esse governo federal ilegítimo, capacho do mercado, é o maior dos desafios. Cultura para essa gente é mais supérfluo do que gelo no Polo Norte. Além disso, num nível mais local, as bandas de Belo Horizonte também deveriam frequentar mais os shows das outras bandas da cidade, para se fortalecer e fortalecer, assim, a cena. Cada coisinha pequena ajuda.

Como vê o cenário político atual na capital mineira, no que diz respeito à cultura, com a chegada do ex-ministro Juca Ferreira como secretário?
Espero que haja mais espaço e mais orçamento para a cultura. Estou confiante que isso vai acontecer, porque a gestão do Juca no MinC (Ministério da Cultura) foi muito boa, inclusiva. Ele sabe que cultura não é supérfluo: é o que define um povo, uma nação. Não fosse assim, porque a gente chama caipirinha de “bebida nacional”?

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