O fiscal que cobra “ajuda” do comerciante; o motorista que oferece dinheiro ao guarda para não ser multado; o cidadão que paga uma quantia ao funcionário público para “apressar’’ a emissão de documentos; o empresário que sonega impostos; o ministro que compra apoio político; o criminoso que suborna o juiz para diminuir a pena ou ser julgado inocente. A corrupção está enraizada em vários setores da sociedade brasileira. E nada disso é recente. A prática chegou junto com as caravelas portuguesas e se instaurou no país como uma herança passada de geração a geração. Na era colonial, locais como Minas Gerais, que só eram acessíveis após meses de caminhada, exigiam ainda mais “incentivos” para os desbravadores portugueses. O governador da Província e outros funcionários recebiam adicionais aos salários oficiais. O extra era a propina. Para Adriano Gianturco, mestre em Ciência Política e professor do Ibmec, mais que uma questão cultural, os hábitos corruptivos são frutos dos sistemas implantados no país. "Temos leis, regras, sistemas, burocracias que incentivam cada vez mais a corrupção. É um ciclo perverso. A Coroa Portuguesa trouxe as hierarquias, a estrutura política da corte criada por sistemas, pelos incentivos”. Nas províncias, as propinas vinham de empreiteiros que arrecadavam em nome do governo a maior parte das receitas do Estado. Impostos eram recolhidos sobre a produção, o uso de estradas e a venda de produtos nos territórios. O povo se via forçado a pagar impostos aos coletores, que tinham até contratos com as autoridades. Quanto mais impostos eles arrecadassem, além do montante prometido ao governo, mais dinheiro sobrava para eles. Burocracia “Existem sistemas que incentivam mais e sistemas que incentivam menos a corrupção. Uma pessoa honesta pode não se aproveitar disso, mas certamente um sistema que gera corrupção atrairá corruptos. Assim como um sistema burocrático incentiva comportamentos para evitar a burocracia”, observa Gianturco. Ainda segundo o professor, o Brasil tem o sistema fiscal mais complexo do mundo, o que acaba incentivando atos para burlar as regras.. “Aqui existe uma regulamentação muito forte. Publicações do Banco Mundial mostram que se gasta cerca de 3.600 horas por ano para entender como pagar impostos no Brasil. Na Bolívia, essas horas caem pela metade. Já nos países europeus e nos Estados Unidos são 200 horas por ano”, ressaltou. “É preciso agir na causa da corrupção e não no sintoma”. Jeitinho brasileiro Para o professor de Antropologia da Universidade Estado do Mato Grosso do Sul (UEMS), João Paulo Aprigio, a corrupção no Brasil é institucionalizada por meio do “ jeitinho brasileiro”. “As pessoas estão muito preocupadas com os atos do outro e se esquecem das próprias corrupções”. Ainda de acordo com o antropólogo, a partir dessa reflexão é possível mudar hábitos e, no futuro, a cultura do povo. Para isso, é necessário que a população entenda que atos simples, como furar filas, formam uma nação que tem o hábito de burlar a lei ou a moral em benefício próprio. Não adianta ir a manifestações contra a corrupção se atos que batem de frente até mesmo com a moral são cometidos, diz João Paulo Aprígio. “A corrupção é uma palavra muito vaga. Porém, é necessário ter consciência de que ela não está lá longe, no político. Ela está aqui, em todos nós, e é importante combatê-la em todas as instâncias”, afirma. O procurador geral da Assembleia e doutor em Direito Constitucional, Bruno de Almeida Oliveira, afirma que no caso de crimes de suborno, por exemplo, a pessoa que os comete está, na verdade, roubando a si mesma. “O dinheiro que seria investido em segurança e saúde, por exemplo, acaba tomando um caminho tortuoso”. Em 22 anos, desvios de dinheiro público atingem dois orçamentos de Minas Gerais O rombo causado pela corrupção no Brasil soma R$ 148 bilhões, conforme levantamento do Hoje em Dia, que engloba o período de 1993 a 2015 (dos “Anões do Orçamento” à “Lava Jato”), tendo por base operações da Polícia Federal. O número é duas vezes superior ao orçamento previsto para Minas neste ano. Corresponde, ainda, a cerca de 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro para este ano. Foram diversas prisões ao longo destes anos. Gente rica e importante, como empreiteiros da “Lava Jato” ou deputados e partidários, no caso do “Mensalão”. A corrupção passou por diversos governos e teve as mais variadas formas de desvios. Escandalizou brasileiros e motivou protestos. Apenas na “Lava Jato”, estima-se um rombo de mais de R$ 10 bilhões. Outros R$ 19 bilhões foram contabilizados em operação que desvendou os trâmites da corrupção no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Casos de corrupção levaram até ao impeachment de um presidente. No caso, Fernando Collor. E quem não se lembra dos anões do orçamento? E a roubalheira se dá não somente na instância federal. Ano a ano ações de investigação são sentidas pelos estados. Pelo mundo Para o cientista político Adriano Gianturco, a corrupção é sistêmica não só no Brasil. “As pessoas têm a mania de achar que o Brasil é o país mais corrupto do mundo, mas não é. Discordo desse pensamento”, afirmou. Segundo ele, países ditos de primeiro mundo também enfrentam problema similar. “O Índice de Percepção da Corrupção (IPC) tem uma metodologia muito conceituada e mostra isso claramente. Existem países com características similares às do Brasil que têm mais corrupção”, afirmou Gianturco. Conforme o cientista, que é italiano, da região da Sicília, a origem da corrupção e da propina no Sul da Itália é parecida com a do Brasil. Estudos mostram que a diferença cultural percebida hoje no Sul e no Norte da Itália é resultado do processo de formação dos reinos. “Na região Norte não era um império, eram principados, estruturas políticas muito pequenas, havia competição entre elas. Já a região Sul, onde estão Nápoles, Calábria, Sicília, foi formada com apenas um reino. Para ganhar favores o povo tinha que pedir para a corte”, contou. O professor acredita que a corrupção também possa ser sintoma de concentração de poder. “É o caso de algumas grandes empresas”, disse.