Na coluna anterior, a partir de um conto de fadas, abordei o mito de Narciso. Minha fonte para aquela versão do mito foi o 2º volume da “Mitologia Grega” de Junito de Souza Brandão, editado pela Vozes.
Na estória da Branca de Neve, o espelho, no qual a rainha má se mirava, era um espelho mágico que até conversava. Já para Narciso, foram as águas límpidas da fonte de Téspias que funcionaram como espelho, permitindo que ele se visse e se apaixonasse por sua imagem, graças a sua beleza.
Dois pontos podem ser destacados a partir daqui. Primeiramente o que podemos chamar de “funções de espelho” e em segundo lugar a imagem. Ambos são essenciais para que ocorra a paixão pela imagem de si.
Vários objetos podem exercer a função de espelho. Além de águas límpidas, um olhar também pode! O olhar da mãe para o infante ou o olhar do parceiro para a amada e vice-versa. Poderíamos avançar nessa questão do olhar funcionando como espelho, mas vamos nos dedicar hoje à imagem. Ops! Dedicar à imagem? Calma, não vamos nos dedicar à nossa imagem, mas ao tema da imagem.
No mito de Narciso o atributo de sua imagem que despertou paixões, inclusive sua própria, foi a beleza. Outros atributos da imagem podem despertar paixões, sejam de natureza física ou não; a força, a inteligência, a riqueza, o poder, uma posição familiar, social ou política.
Machado de Assis, no conto “O Espelho, Esboço de uma Nova Teoria da Alma Humana”, chama esses atributos da imagem de “alma exterior”. A alma que olha de fora para dentro, ao contrário da alma interior que olha de dentro para fora. Cita como exemplos: “um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação ou até um simples botão de camisa ou um par de botas”.
Esses atributos adquirem tanta importância que acabam se confundindo com a própria imagem. Segundo o conto, “há casos, não raros, que a perda da alma exterior implica a da existência inteira”. Para ilustrar a importância da alma exterior, Jacobina, o personagem principal, narra um episódio de sua juventude. Aconteceu quando foi nomeado Alferes da Guarda Nacional. Era um rapaz pobre, mas o posto de Alferes começou a mudar sua vida. Quando foi enviado para a casa de uma tia, essa reforçou ainda mais aquela alma exterior. Era chamado de “Senhor Alferes”. “Era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda hora”. A tia chegou a presenteá-lo com um grande espelho, “obra rica e magnífica”, que passou a ser a melhor peça da casa.
Aconteceu que todas “aquelas coisas, carinhos, atenções, obséquios” fizeram nele uma transformação: “O Alferes eliminou o homem... A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente...”
Quando a tia que o hospedava precisou viajar, os serviçais deixaram a casa e Jacobina encontrou-se sozinho. Sua solidão tomou proporções enormes: Os tic-tacs do relógio “não eram golpes da pêndula, eram um diálogo do abismo, um cochicho do nada”.
Depois de várias tentativas para suportar o mal estar, Jacobina resolveu olhar-se no espelho; primeiramente viu “uma figura vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. Lembrou-se então de vestir a farda de Alferes. Com isso restituiu a força da alma exterior e pode suportar os outros dias de solidão, mesmo que às custas da alma exterior, aquela que havia eliminado o homem...