Refugiados adotam Atlético e reforçam uma ligação histórica

Frederico Ribeiro - Hoje em Dia
Hoje em Dia - Belo Horizonte
15/09/2014 às 08:28.
Atualizado em 18/11/2021 às 04:12
 (Lucas Prates)

(Lucas Prates)

A última pesquisa Ibope apontou o crescimento da torcida do Atlético para 7 milhões de pessoas. Mas o levantamento não indicava a existência de um grupo especial de alvinegros em Belo Horizonte.

São apaixonados pelo Galo que fortalecem o passado do clube. Isso porque, nos primórdios de sua trajetória, o Atlético acolheu classes marginalizadas da cidade, entre elas a comunidade árabe.

Fugindo da atual guerra civil na terra natal, 28 sírios se refugiam na capital mineira. Assim como os conterrâneos imigrantes do começo do Século XX, encontraram no Atlético um motivo para festejar. Um contraste com a angústia de ver a Síria arrasada pela violência.

“Eu deixei o terror para trás, mas ele ainda assola meus semelhantes”, lamenta o bombeiro civil Shvan Frho. Ao ser perguntado sobre o Atlético, ele logo grita “É Galo Doido”, misturando o sotaque árabe com um fluente português.

Síria na veia

Assim como inúmeras figuras ilustres que fizeram parte da história preto e branca, o presidente do clube, Alexandre Kalil, também possui o sangue árabe nas veias.
 
Se qualquer questionamento sobre o Atlético pode ser motivo para ele encerrar a conversa, o diálogo sobre os antepassados é um tópico que abre o seu coração.

“Sobre isso eu falo. Nós temos a obrigação de dar a mão a essa gente, porque faz parte do nosso povo”, defende Kalil, demonstrando orgulho por carregar o sobrenome sírio mais importante do Galo. “Sou um dos poucos brasileiros que já foi à Síria. É a coisa mais linda que você pode imaginar”.
 
Influência está enraizada no clube
 
Kalil, Cadar, Patrus, Moysés, Cury, Arges e Lasmar. De presidente a jogador, de conselheiro a médico. A influência sírio-libanesa no Atlético é histórica.

Foram três presidentes com a ascendência (Paulo Cury, Elias e Alexandre Kalil), além de um craque responsável por alavancar a paixão síria pelo Galo: Said Paulo Arges.

A ligação entre os sírios atleticanos possui um forte laço familiar. Se o presidente do clube é Kalil, o do conselho deliberativo é Cadar: Emir, engenheiro civil e primo de segundo grau de Alexandre.

Emir Cadar, que também é cônsul da Síria na capital e auxilia na adaptação dos refugiados à cidade, é filho de Antônio Cadar, fundador do extinto Sport Syrio Horizontino.

O clube revelou Said, que depois integrou o “Trio Maldito” ao lado de Mario de Castro e Jairo. Com a mudança de clube, arrastou a colônia sírio-libanesa para o bairro de Lourdes. Sexto maior artilheiro da história do Galo, Said foi ainda diretor do clube.

“No nosso Syrio, Said era o craque. Como o clube acabou, ele foi para o Atlético. Com isso, toda a colônia começou a torcer, porque ele era um símbolo. O Said foi o responsável por esse amor dos árabes de Belo Horizonte pelo Galo”, opina Emir Cadar.

O lado verde

No final dos anos 20, os sírios se converteram e viraram influentes no Atlético. Mas houve uma “ruptura” na família. O sobrenome Salum, hoje, está ligado ao América.

Marcus, presidente do Coelho, é primo de primeiro grau de Emir e do falecido Elias Kalil. Filho de Salim Salum, ele é irmão de Rosinha, mãe de Emir, e Amélia, avó de Alexandre Kalil.
 
‘O Atlético ajudou a aliviar as saudades do meu país’
 
No último dia 6 de setembro, os refugiados sírios em Belo Horizonte não conseguiram dormir direito. Porém, não era a lembrança do barulho de bombas ou tiros que os atormentava, e sim a expectativa pela partida entre Atlético e Botafogo, pela 19ª rodada do Brasileiro.

Os integrantes do grupo foram convidados pelo presidente Alexandre Kalil e por Emir Cadar, presidente do conselho deliberativo do clube e atual cônsul do país árabe na capital, a ver de perto a vitória por 1 a 0.

“Eles chegaram a Belo Horizonte ‘pingados’, fugindo da guerra. Cada hora, chegava um número. E eles foram acolhidos pela colônia. Naturalmente, como quase todos nós somos atleticanos, eles escolheram o Atlético como time também”, justifica Cadar.

Entre os imigrantes torcedores está o bombeiro Shvan Frho, que chegou às terras brasileiras em 2012, fugindo da guerra após cumprir o alistamento obrigatório para homens no exército de Bashar Al-Assad, presidente da Síria.

“O Atlético é a minha paixão, sou um fanático. Cheguei aqui em 2012 e, por causa do Ronaldinho, passei a acompanhar o Galo. Já frequento o Independência há tempos. Fui ao jogo do domingo retrasado. Muito bonito ver a torcida gritando. Foram 90 minutos em que reconstruí o sentimento de união com outros sírios. O Atlético ajudou a aliviar as saudades do meu país”, conta o árabe atleticano, que foi orador da turma ao concluir o curso de bombeiro civil em Belo Horizonte.

Devem ficar
 
Shvan Frho mora com uma família de brasileiros que o ajudou a se refugiar em Belo Horizonte. Ele conheceu um brasileiro na Síria e, quando a guerra avançou para um estado crítico, resolveu arrumar as malas. Totalmente adaptado a Minas Gerais, ele não pretende retornar para o país de origem.

“Não quero voltar para lá. Pelo menos, é o que penso hoje. Gostaria de trazer a minha família para cá, mas sei que é difícil ir buscá-los na Síria”, disse o cidadão árabe.

Assim como quase todos os sírios refugiados na cidade, ele não possui uma postura política na briga entre os rebeldes e o ditador Al-Assad. A única preocupação, diz ele, é ver o país livre da destruição e, consequentemente, da intervenção estrangeira comandada de lados opostos por Estados Unidos e Rússia.
 
Padre sírio é também um devoto do clube

 
Shvan e os demais refugiados sírios já estão inseridos na sociedade mineira, especialmente por meio do comércio.

Para isso, uma figura tem sido essencial. Em uma população composta por 90% de muçulmanos, foi um católico, o padre George Rateb Massei, o responsável por tornar a mudança de cultura e ambiente um pouco menos difícil.

Os imigrantes estão alojados em quatro apartamentos perto da Igreja Sagrado Coração de Jesus, na região hospitalar de Belo Horizonte, onde George exerce a função de líder religioso há 11 anos.

“Não é novidade falar da capacidade que o brasileiro tem de acolher bem. Temos que agradecer aos funcionários do aeroporto e à Polícia Federal, pois todos estão legalizados”, reforça Rateb, que se vangloria de morar no Brasil para os familiares que vivem nos Estados Unidos.

George mantém visitas à Síria com regularidade para levar suprimentos e ajuda na legalização dos imigrantes que chegam a BH.

O padre árabe chegou ao Brasil em 2003 durante sua trajetória na sacristia. E, ao se deparar com a paixão da colônia sírio-libanesa pelo Atlético, não teve como escolher outro clube para torcer.

“Todo árabe em Belo Horizonte ama o Atlético. Cheguei aqui ao Brasil e fui ganhando vários presentes com o símbolo do clube: caneca, caneta, panos bordados... Todos nós temos saudade da nossa casa e isso nunca acaba, mas descobrimos uma maneira de amar este lugar, e o Atlético é parte disso”, conta.

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