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Cem anos separam o pó de arroz aplicado pelo meia Carlos Alberto, do Fluminense, ao próprio corpo para disfarçar a sua cor e defender o tricolor carioca numa partida disputada nas Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 17 de maio de 1914, e a banana atirada por um torcedor contra o lateral-direito Daniel Alves, no domingo passado, no El Madrigal, em Villarreal. Mais que adversários, os negros brasileiros, em casa ou no exterior, sempre tiveram que driblar a irracionalidade. E o fizeram não só com talento, mas, principalmente, com dignidade.
O primeiro grande título da Seleção canarinho, o Sul-Americano de 1919, saiu dos pés de Friedenreich. No mesmo estádio das Laranjeiras onde Carlos Alberto tentou disfarçar a própria cor, um mulato, filho de um alemão com uma negra, marcou o gol da vitória do Brasil sobre o Uruguai, por 1 a 0.
Na primeira Copa, em 1930, no Uruguai, o volante Fausto, do Vasco, foi o único brasileiro a integrar a seleção do torneio. E voltou para casa com o apelido de A Maravilha Negra. Oito anos depois, na França, o Brasil tinha o primeiro ídolo internacional. E o Mundial dominado pela Itália fascista teve como artilheiro o centroavante Leônidas da Silva, que virou o Diamante Negro.
Maracanazo
Mas tudo isso foi esquecido em 1950. E a culpa pelo Maracanazo recaiu sobre o goleiro Barbosa e os defensores Juvenal e Bigode, os três negros. O preconceito deixou marcas. Na preparação para a Copa de 1958, um relatório jamais confirmado pela CBD, mas que é citado por várias fontes, indicava que um estudo realizado em 1956, durante uma excursão da Seleção à Europa, apontava que os atletas negros tinham inferioridade psicológica. E que isso tinha contribuído não só para a derrota em casa, diante do Uruguai, mas também para a eliminação no Mundial de 1954, na Suíça, contra a Hungria, na partida que ficou marcada como A Batalha de Berna.
O início de caminhada do Brasil, na Suécia, foi com apenas um negro no time, Didi, que tinha como reserva outro negro, Moacir. No último jogo da primeira fase, Pelé, Vavá e Garrincha entraram na equipe de Vicente Feola não só para colocá-la nas quartas de final, mas para dar à Seleção o primeiro título mundial. Se existiu, o relatório da CBD era colocado para escanteio. A história, a partir daí, é sabida por todo o mundo.
O que não se conhece é a personalidade de quem atira uma banana contra um jogador ou imita o som de um macaco quando ele toca a bola, na tentativa de diminui-lo pela cor. Daniel Alves é só mais uma vítima de uma história que já atingiu, na Europa, Roberto Carlos, Hulk, Robinho, Neymar e até estrelas internacionais, como Eto’o e Balotelli, entre outros. Do lado de cá do Atlântico, numa terra marcada pela miscigenação, só neste ano, Tinga foi alvo de insultos racistas, em Huancayo, no Peru, em jogo da Libertadores, e Arouca, em Mogi Mirim (SP), em partida do Campeonato Paulista.
O assunto é grave e precisa parar de ser tratado na esfera esportiva. As lutas e campanhas da CBF e da Fifa são válidas. Assim como as manifestações de apoio às vítimas, como as que aconteceram nesta segunda-feira (28), via redes sociais. Mas o que o Brasil e o mundo precisam é de ações firmes. Efetivamente passar a tratar o racismo como crime é sem dúvida um caminho, que não pode ser apenas a interdição de estádios ou impedir que torcedores racistas os frequentem.
Os casos se multiplicam. A repercussão é grande, mas a punição pequena diante da covardia do ato. É triste concluir que Carlos Alberto cobriu o corpo de pó de arroz, há 100 anos, para se proteger de gente que pensava como o espanhol que atirou uma banana em Daniel Alves, há dois dias.