Pelé entra na disputa presidencial da Fifa e apoia Champagne

Estadão Conteúdo
02/11/2015 às 17:18.
Atualizado em 17/11/2021 às 02:18
 (Nelson Almeida)

(Nelson Almeida)

Pelé coloca seu peso de maior atleta do século nas eleições presidenciais da Fifa. O ex-jogador brasileiro fechou um acordo para apoiar o francês Jerome Champagne para o pleito que ocorre dia 26 de fevereiro de 2016. À Agência Estado, em sua primeira entrevista a um jornal brasileiro desde que anunciou sua candidatura, Champagne insistiu que a Fifa precisa ser "mais humilde" e passar por uma profunda reforma. Mas ele também faz um alerta ao Brasil: o país não pode se limitar a ser um exportador de jogador.

Pelé já havia dado seu apoio a Champagne no ano passado quando o francês ensaiava uma candidatura. Mas o projeto foi abortado ao não conseguir cinco federações que chancelassem seu nome no processo. Agora, o cabo eleitoral vai entrar em campo e a candidatura foi apresentada.

Champagne, que é um dos sete homens que brigam pelo poder, trabalhou por onze anos ao lado de Joseph Blatter. Mas garante que não tem vergonha de ter feito parte da entidade. Ele também insiste que a Copa de 2014 no Brasil, os protestos e o "mal-estar" serviram como "ponto de virada" para a história das Copas. "O Mundial abriu os olhos das pessoas de que não se pode continuar assim", disse. Eis os principais trechos da entrevista:

Pergunta - Por que o senhor se candidata uma vez mais ao cargo de presidente da Fifa?

Resposta - Estou convencido de que, num mundo globalizado, precisamos de um governo do futebol forte. O que vemos hoje é que essa globalização trata do futebol como trata de outras esferas da economia. Os mais ricos estão cada vez mais ricos. Os que não têm muito, têm cada vez menos. E a classe média do futebol está sendo esmagada. A Fifa do século XXI é o desafio central do futebol. Também decidi me candidatar porque passamos a ver pessoas sem programa se apresentando, apenas com slogans. São vazios de substâncias. Vemos também muitas denúncias e ainda arranjos entre pessoas, numa espécie de troca de favores em salas fechadas de hotéis. A Fifa precisa ser forte e renovada.

P - Quais serão suas prioridades ao assumir a Fifa?

R - Tenho um plano de governo com oito pontos e 50 áreas de atuação. Mas posso dizer que precisamos modernizar a administração, reduzir gastos em 5%, criar uma divisão do futebol profissional, colocar a Fifa no mais alto nível de ética e transparência, revelar o salário do presidente e reforçar a independência do Comitê de Ética. Mas existe outro desafio: lutar contra o aumento de desigualdade.

P - E como se faz isso?

R - A Fifa vive o mesmo debate da reforma do Conselho de Segurança da ONU ou mesmo da Cúria no Vaticano. Suas estruturas não refletem mais o mundo. Não é aceitável que a África, com 54 países, tenha quatro lugar no Comitê Executivo da Fifa, enquanto a Europa, com 53, tenha oito. Precisamos ainda ter na estrutura do poder da Fifa os jogadores e as ligas.

P - Mas só trocar de presidente é suficiente para restabelecer a credibilidade da Fifa?

R - Não. Um bom presidente não pode atuar sem uma reforma de suas estruturas. Pode-se criticar João Havelange. Mas, quando chegou à Fifa, ele tirou a entidade do controle dos europeus. Ele entendeu que o futebol se globalizava. Sabemos muito bem que o regime militar brasileiro o apoiou. Mas, apesar disso, a verdade é que Havelange tinha entendido que precisava de outra Fifa. O mesmo debate ocorre hoje. Hoje, os mais ricos pensam que devem controlar o governo do futebol. Esse é um tema que os sul-americanos precisam pensar. O Brasil e o resto do continente não podem ficar à reboque da Europa. Não podem pensar apenas em vender jogadores. Precisamos desenvolver a liga brasileira. Temos de reforçar o campeonato do Peru. O futebol sul-americano precisa existir e ter força. E apenas uma Fifa forte pode dar esse espaço. Existe o risco de a América do Sul ser uma periferia da Europa no futebol.

P - Quais sinais estão sendo dados neste sentido?

R - O que vemos é o risco de o futebol se transformar em uma NBA. Uma liga só com poder e que atrai o mundo inteiro. O poder é tão grande que até cria sombra sobre as seleções nacionais. Isso pode ocorrer com a Europa e isso é um risco sério. Os 20 clubes mais ricos do mundo movimentam US$ 6,2 bilhões. Enquanto isso, mais da metade das federações do mundo sobrevivem com menos de US$ 2 milhões por ano. Na Europa, vamos comemorar em poucos dias a queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro. Nessa época, era possível que um clube da Romênia ganhasse a Liga da Europa. Em 1991, foi um clube da ex-Iugoslávia. Hoje, isso é impossível. Houve um aumento da desigualdade e isso afeta a todos. Há, portanto, um risco de que haja uma monopolização do futebol. Hoje, o orçamento do PSG é duas vezes maior que o segundo orçamento do país, o Lyon. O 20o colocado na Inglaterra recebe mais que os 18 clubes da Liga Holandesa.

P - Mas a Conmebol apoiou o Michel Platini.

R - Acho que a Conmebol precisa esperar a lista completa dos candidatos. Depois deve analisar as propostas de cada um e tomar uma decisão elaborada. Minha plataforma é de que o futebol sul-americano não fique à reboque do europeu. Os sul-americanos precisam de um futebol com contratos melhores de televisão, com um desenvolvimento das ligas.

P - Na América do Sul, a classe dirigente foi duramente afetada pelas prisões de maio e os processos legais. A renovação de dirigentes também precisa ocorrer na região?

R - Não só na América do Sul. O mundo inteiro precisa disso. Temos uma nova geração de dirigentes, como no Chile e novas pessoas aparecendo no Uruguai.

P - Mas qual tem sido a repercussão de suas ideias na América do Sul? O senhor recebeu algum apoio?

R - Sim, tenho o prazer e honra de confirmar pela primeira vez publicamente que Pelé vai me apoiar na campanha. Ele completou 75 anos e tenho uma relação de admiração. Conheci ele quando era ainda ministro dos Esportes de Fernando Henrique Cardoso e eu era diplomata francês em Brasília.

P - Qual será seu papel?

R - Estamos discutindo como ele vai participar. Mas isso acontecerá. Mais importante ainda são os conselhos que ele me dará. Ele tem um papel muito forte no futebol, apoiou os sul-africanos para a Copa de 2010 e tem uma visão importante sobre o jogador e o passe. Estamos em contato telefônico e em breve vamos detalhar tudo isso.

P - Em se tratando de ex-jogador, foi uma surpresa para o senhor o que ocorreu com Michel Platini, que era visto como favorito e um ex-atleta assumindo a Fifa?

R - Foi uma surpresa. Ele trabalhou como conselheiro de Blatter, assim como eu. Mas eu tinha um contrato e não recebi dinheiro depois.

P - Com todos esses escândalos, a Fifa ainda pode ser salva?

R - Claro que sim. Ela tem 111 anos e eu passei onze anos ali. Tenho orgulho disso, com projetos de desenvolvimento, mecanismos de solidariedade. Organizamos ligas em países como o Quênia, a relação com jogadores. Não tenho vergonha disso. Temos que continuar a fazer o que foi bem feito. A Fifa pode ser salva. É verdade que a crise é profunda. Mas, no meio dela, a Copa do Mundo de Futebol Feminino foi feita e foi espetacular. A Fifa é uma organização sólida. É uma crise, mas uma oportunidade também. Para isso, vamos precisar arregaçar as mangas e trabalhar.

P - Mas como é que se permitiu chegar à crise atual e que exigiu a intervenção da polícia?

R - O mundo mudou. Uma classe média passou a exigir seus direitos. As leis também mudaram. Há dez anos, a lei na Suíça permitia que empresas computassem as comissões que pagavam até mesmo em seus impostos. Eu entendo o fato de que o mundo não acredita na Fifa. Mas precisamos desse governo central do futebol. Existem entidades que querem privatizar o futebol por interesses políticos, econômicos e até criminais. Precisamos de um governo que possa conservar o futebol. Precisamos de um centro forte. Sei que vai ser difícil vencer as dúvidas.

P - Onde é que o sr. colocaria Blatter nessa história?

R - Com o tempo, com menos pressão dos jornais, a história o julgará de uma forma mais positiva. Ele fez muito.

P - Se o senhor for eleito, que lições tirará do que ocorreu na Copa de 2014 no Brasil para o futuro da Fifa?

R - Muitas. A Copa precisa ser protegida. Ela é um momento único no mundo. A primeira lição é de que a Copa precisa ser aceita em um país, em seus movimentos sociais.

Temos de estabelecer que oito ou nove estádios são suficientes para a Fifa. Mas se um governo quiser ter mais, é ele que deve assumir essas responsabilidades e isso precisa ficar claro. A outra lição é de que a Fifa precisa ser mais humilde, mais sensível e não se impor em um país. Precisamos pensar mais no impacto social da Copa. Caso contrários, teremos muitos problemas em convencer as democracias a sediar o evento. Por fim, o que precisamos aprender é respeitar os países. A Fifa não pode dar um "chute no traseiro" de ninguém. Isso nos fez recordar aos anos da escravidão. A Copa foi extraordinária. Mas o sentimento depois foi de um mal-estar. A Copa precisa ser mais aceita. O evento precisa aceitar o que existe em um país e se um governo não quer erguer um novo aeroporto, não se pode colocar como exigência. A Fifa precisa se concentrar nos estádios e apenas num número necessário.

O Mundial abriu os olhos das pessoas de que não se pode continuar assim.
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