“Agindo de boa-fé e combinando as regras, como a forma de pagamento, etc, as partes vão cumprir, pois o acordo não foi imposto por um terceiro, foi construído por elas. É diferente do que acontece em um tribunal, com juiz e uma sentença, onde uma parte ganha e a outra perde” (Maurício Vieira/Hoje em Dia)
O Judiciário ainda contabiliza os acordos fechados durante a Semana Nacional da Conciliação, de 7 a 11 de novembro. Independentemente do balanço, o evento é vitrine para uma mentalidade que desde 2015 vem ganhando espaço no país: a busca pela solução pacífica de conflitos. Disputa entre vizinhos, partilha de bens, cobrança de dívidas e fixação de pensão alimentícia, por exemplo, podem ter um desfecho eficaz e mais rápido se as próprias partes construírem uma saída com o apoio de conciliadores e mediadores. Previstos na lei, os métodos alternativos de resolução de controvérsias representam uma opção a batalhas nos tribunais, são oferecidos na Justiça pública e na privada e promovem uma cultura de paz. O HOJE EM DIA conversou sobre o assunto com o conciliador e mediador Carlos Alves. Ele está à frente da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem Minas Gerais Brasil (CCMA MG Brasil), primeiro serviço particular credenciado pelo Tribunal de Justiça (TJMG) para atuar na área na capital mineira.
De um modo geral, as pessoas consideram a Justiça comum lenta e burocrática, mas também desconhecem mecanismos que a própria lei prevê para a solução mais rápida de conflitos. Quais são esses métodos e quando eles surgiram?
Para fazermos um histórico, temos que voltar à Constituição de 1988. Ela garantiu a todos os cidadãos o acesso à justiça, mas com uma única porta de resolução de controvérsias. Só que o Judiciário não suportou todas as demandas. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), há mais de 100 milhões de processos tramitando em todas as instâncias no Brasil, mas para 70% deles caberia autocomposição total ou parcial. O Legislativo tratou de fazer a readequação na lei, reconhecendo outros métodos de solução de conflitos como adequados. Isso está no novo Código de Processo Civil, de 2015, e na Lei de Mediação. Passaram-se sete anos, mas essa transformação da cultura é um processo relativamente lento, e para acontecer é preciso dar conhecimento às pessoas sobre o que são a mediação, a conciliação e a negociação, e também a arbitragem. Cada instituto é aplicado de acordo com a necessidade do conflito.
O que são métodos autocompositivos?
São métodos em que as próprias partes constroem uma solução para o problema, como na mediação e composição. Mas para os envolvidos chegarem a esse acordo há necessidade de boa-fé e do entendimento de que ambos precisam ceder em algum ponto, fazer concessões mútuas. Além disso, às vezes o acordo passa pela linha do emocional. É o caso de uma partilha de bens em que o desfecho está travado por questões familiares, mágoas... Então chegar a um consenso é um trabalho de construção. É onde entra um terceiro imparcial, o mediador, para auxiliar nesse diálogo. Na conciliação, esse terceiro pode inclusive sugerir, opinar. Mas é importante não confundir, por exemplo, com uma espécie de terapia. A mediação e a conciliação buscam a saída para aquele conflito específico do seio familiar, empresarial ou escolar, entre outros.
Qual a validade desses acordos?
Para se ter a garantia jurídica, o acordo é lavrado a termo e assinado em três vias pelas partes. Aí poderá ser extrajudicial – quando já está valendo a vontade das partes, e elas cumprem, transformando-se o documento em um título executivo extrajudicial. Ou o acordo pode ser levado à Justiça pública para homologação, transformando-se em um título executivo judicial. Neste caso, significa dizer que se uma das partes não cumprir aquele combinado, a outra já pode pedir a execução direta do acordo, do título, pulando no processo judicial a fase do conhecimento (fase da ação em que o juiz decide quem tem o direito). Então você ganha tempo e há economia processual e financeira, porque economiza-se no pagamento das custas processuais.
Como funcionam a conciliação e a mediação na Justiça comum?
Na Justiça pública, há os Centros Extrajudiciais de Solução de Conflitos (Cejuscs), e a ideia é que eles sejam levados a todas as comarcas do Estado. Mas o serviço de tentar buscar uma solução pré-processual dos conflitos também é oferecido na via privada, em câmaras particulares credenciadas pelo Tribunal de Justiça. Naturalmente, a diferença é o pagamento das custas processuais no âmbito privado – mas ao contrário do que se imagina, o valor é acessível para a maioria da população, além de negociável. Também é importante dizer que mesmo quando a parte recorre ao serviço público, na fase pré-processual, é possível que tenha algumas custas, sobretudo a contratação de um advogado para iniciar a demanda para ela.
Na Justiça privada é obrigatório ter advogado?
Nem sempre. Num divórcio consensual, as partes podem constituir advogados para atuar na Câmara. Mas caso não queiram – as questões já estejam bem pacificadas e definidas, como a partilha de bens, guarda de filhos, pagamento de pensão – e não haja muitas arestas para serem ajustadas, queiram apenas formalizar esse divórcio consensual extrajudicialmente, os envolvidos podem comparecer sem o advogado para construir esse acordo. A própria câmara vai encaminhar para o Cejusc e pedir a homologação do divórcio, já voltando em forma de sentença de divórcio, que será levada ao cartório e averbada na certidão de casamento.
Parece um processo menos burocrático...
Com certeza. É, com o respaldo da lei, desburocratizar, agilizar, diminuir o custo e, mais do que isso, dar às pessoas a agilidade que o problema requer. Hoje, há uma frustração muito grande quando se busca a Justiça pública no sentimento daquilo demorar muito e perder-se o princípio da oportunidade da resposta. Damos muito o exemplo do inventário. Às vezes ele se arrasta tantos anos num processo judicial que o patrimônio deprecia, há rompimento das relações entre as partes, herdeiros e etc... ao invés de facilitar a vida das pessoas nos seus conflitos, costuma causar embaraços, custo muito alto, desavenças entre as partes, às vezes apropriações indevidas por alguns herdeiros. Então não há a agilidade que as pessoas esperam quando estão no calor de suas emoções e conflitos.
Em quais áreas a lei permite conciliação e mediação?
Em praticamente todos os segmentos: familiar, empresarial, em conflitos escolares, cumprimento contratual, relações trabalhistas... Só não cabe autocomposição na área criminal, ou seja, nos crimes contra a pessoa e o patrimônio.
A disposição para o diálogo é fundamental?
Sim, mas também é preciso que as pessoas sejam orientadas, saibam que existe essa porta de entrada dos métodos autocompositivos para a solução de conflitos. O CPC diz que os operadores de Direito, advogados, professores, juízes, deverão orientar o cidadão sobre esses mecanismos na fase pré-processual. Óbvio que haverá casos que terão que ser judicializados, mas deve haver como ponto de partida essa tentativa de construção da solução pacífica para os conflitos. Uma frase interessante que gostamos de citar é que a legislação está empoderando o cidadão, mostrando que ele não precisa eleger um terceiro, no caso um juiz, para resolver um conflito em que ele e a outra parte sabem exatamente o que está acontecendo, como solucioná-lo e os problemas que poderão ser acarretados se não for resolvido da melhor forma. É a autonomia da vontade das partes. Isso é fundamental para que as pessoas sintam esse poder. Agindo de boa-fé e combinando as regras, como a forma de pagamento, etc, elas vão cumprir, pois o acordo não foi imposto por um terceiro, foi construído por elas. É diferente do que acontece em um tribunal, com juiz e uma sentença, onde uma parte ganha e a outra perde. Ou seja, uma sai satisfeita, ou nem tão satisfeita, e a outra sai totalmente insatisfeita e às vezes até com raiva.
O conciliador ou o mediador pode tomar as dores de um dos lados?
A ideia, assim como no poder Judiciário, é atuar com o máximo da imparcialidade. Quando se percebe que há um desequilíbrio das partes ou que existe ali a necessidade de uma intervenção do Estado, o conciliador ou mediador encerra a tentativa desse processo sugerindo que se busque a Justiça pública para que se aplique uma sentença. Não significa que os institutos da mediação e conciliação, bem como as câmaras privadas, serão o resultado para todos os problemas da sociedade. Somos mais um ingrediente, mais um auxílio, tanto é que somos atividade de Justiça privada auxiliando a Justiça pública, porque não se faz justiça só através dos entes públicos.
A Semana Nacional da Conciliação, promovida pela CNJ, é mais uma tentativa de divulgar essa política de conciliação e mediação de conflitos. Você acha que esses métodos vão de fato se popularizar?
Não tenho dúvidas em relação a isso. A própria Justiça pública tem dito que esse é um caminho sem volta. O que cada vez mais precisamos é mostrar ao cidadão a existência dessas outras portas de entrada para se buscar justiça.