(Marcello Casal Jr./ Agência Brasil )
Maria era casada com Bil, tinha dois filhos e esperava o terceiro quando foi assassinada pelo marido. O motivo teria sido a recusa de Maria a viver com Bil após descobrir que ele mantinha um caso com sua irmã, Madalena. Inconformado por ser rechaçado pela mulher, Bil armou uma emboscada e matou Maria a facadas.
Essa história poderia ser o relato de um novo crime de feminicídio ocorrido em 2018, mas aconteceu na década de 1920 no município de Várzea Alegre, no Sul do Ceará. Maria de Bil, como ficou conhecida, ganhou fama de santa popular, uma capela que leva seu nome e provoca verdadeira romaria em sua devoção todo mês de março, quando ocorreu seu assassinato.
Foi também no mês de março, já no ano de 2015, que o homicídio de mulheres em situações de violência doméstica ou por discriminação pela sua condição feminina ganhou status de crime hediondo na legislação brasileira. Da morte de Maria de Bil até os dias atuais, o cenário praticamente se repete. No Brasil, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que ocorram 5 feminicídios para cada grupo de 100 mil mulheres.
A não aceitação do fim do relacionamento também provocou a morte de Stefhani, 22, pelo ex-companheiro Alberto. O feminicídio aconteceu no dia 1º de janeiro deste ano, em Fortaleza, e chocou a população pela frieza com que foi praticado. Alberto aparece em imagens de câmeras de segurança circulando com Stefhani já morta na garupa de uma moto. O corpo, cheio de machucados e hematomas, foi abandonado próximo a uma lagoa, horas depois.
“Na quase totalidade dos casos de feminicídio, a vítima nunca havia registrado um boletim de ocorrência antes contra esse infrator. Isso quer dizer que não houve violência anterior a essa que provocou a morte? Que essa foi a única? Acreditamos que não. Por medo, por naturalizar a violência, a vítima ficou paralisada, ela não foi atrás de denunciar os abusos por medo das ameaças ou achando que o companheiro nunca seria capaz de ceifar sua vida”, descreve Erika Moura, titular da Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza.
As estatísticas da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) contabilizam 17 Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) por violência doméstica durante 2017. Em 2016, ano seguinte ao início da aplicação da Lei do Feminicídio, foram 40.
Um ato normativo da secretaria, publicado em 2017, define que os CVLIs em que haja a caracterização de feminicídio sejam investigados pela Delegacia de Defesa da Mulher. Foi o que ocorreu com o caso de Sthefani, que sofria abusos do companheiro e chegou a morar em outra cidade para ficar afastada dele. Segundo a delegada, indícios, oitivas de testemunhas e provas documentais caracterizaram o feminicídio e a autoria foi definida como sendo de Alberto, que tem mandado de prisão em aberto e está foragido.
Segundo a delegada, o fato de os abusos serem cometidos em sua maioria pelos companheiros das vítimas são um entrave para a denúncia e um risco que pode culminar em assassinato.
“Esse infrator não é uma pessoa comum, ele tem um relacionamento com a vítima. Isso faz com que ela protele a denúncia. Muitas vezes, existe a dependência econômica, mas isso não preserva a família. Pelo contrário, faz com que todos adoeçam, os filhos sofrem indiretamente.”
Justiça
Por iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os tribunais de Justiça do Brasil realizam três edições anuais do projeto Justiça pela Paz em Casa. Durante uma semana, é realizado um mutirão de julgamentos e audiências de casos de violência contra a mulher, incluindo feminicídios, que são de responsabilidade das varas do júri.
O promotor Ythalo Frota Loureiro, titular da 4ª Promotoria de Justiça do Júri de Fortaleza, avalia que os efeitos da tipificação do crime de feminicídio são notórios na Justiça, sobretudo pela definição de penas mais severas, que é de pelo menos 12 anos em regime fechado, e por não haver a necessidade de considerar os motivos que possam ter levado ao crime.
“No tribunal do júri, é plenamente possível abstrair os motivos, meios e modos pelos quais o crime é cometido e ainda assim defender que violência doméstica e discriminação contra a mulher no contexto de homicídio são inadmissíveis e que os que o praticam podem ser condenados por um crime qualificado.”
No Ceará, na última edição da semana Justiça pela Paz em Casa, realizada em novembro de 2017, foram julgados cinco casos de feminicídio. Em quatro, a Justiça condenou os réus. Na primeira edição da semana de 2018, que ocorre nesta semana, o Tribunal de Justiça do Ceará agendou 150 audiências no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Fortaleza.
Para a delegada Erika Moura, a definição de feminicídio na lei brasileira traz destaque aos casos de violência contra a mulher e contribui para que a população e os governantes percebam a gravidade dos casos.
“Ainda existe a omissão e nós ressaltamos que, para fazer a denúncia, não é preciso se identificar. Mas o que vejo na prática é que as mulheres estão mais empoderadas por conhecer a lei e não esperam sofrer lesão corporal ou uma tentativa de homicídio. Elas já agendam os inquéritos e buscam as medidas protetivas.”