(Codecex Divulgação)
Minas Gerais pode ter o primeiro Patrimônio Agrícola Mundial brasileiro. A candidatura da coleta de flores sempre-vivas na Serra do Espinhaço, no Vale do Jequitinhonha, ao selo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO-ONU) será oficializada na próxima semana, durante evento em Diamantina.
O sistema de agricultura tradicional é realizado por comunidades rurais ao longo de séculos na parte mineira do Espinhaço, abrangendo os municípios de Bocaiúva, Olhos d’Água, Diamantina, Buenópolis, Couto Magalhães, Serro e Presidente Kubitschek.
O dossiê a ser entregue a representantes da entidade internacional no I Festival dos Apanhadores e Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas, que será realizado em 21 e 22 de junho, conta a história das cerca de 20 comunidades, a maioria quilombola, e o plano de conservação da coleta da espécie mantido pelas famílias.
O documento foi elaborado pela Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas da Serra do Espinhaço de Minas Gerais (Codecex) em parceria com o governo mineiro, prefeituras e universidades.
O plano estabelece a divisão de responsabilidades na conservação do sistema agrícola e da biodiversidade da parte mineira da Serra do Espinhaço. Os poderes públicos estadual, federal e municipais, além das comunidades, se comprometem a realizar diversas ações de preservação.
Constam do documento, ainda, a proposta de celebração de termo de compromisso que possibilite a prática tradicional em áreas das unidades de conservação da região, criação de protocolos bioculturais e boas práticas de consumo da água.
Outros pontos são o acesso dos apanhadores de sempre-vivas aos programas de comercialização dos produtos, aperfeiçoamento das técnicas de manejo, promoção do uso das sementes nativas e raças de animais locais.
As partes ainda firmam compromisso com políticas públicas nas áreas de transporte, educação, saúde, certificação das comunidades e povos tradicionais, regularização fundiária e titulação dos terrenos.
Identidade
As sempre-vivas são espécies características do cerrado. “São flores genuinamente mineiras que têm importância cultural e econômica, conferindo uma identidade local”, afirma Fernanda Monteiro, pesquisadora da Universidade do Estado de São Paulo (USP), que participa da equipe que fez o relatório que será entregue à FAO.
Os cultivadores preservam conhecimentos ancestrais no manejo das flores, no cultivo de roças e na criação de raças caipiras de animais. “São técnicas que remontam às culturas indígena, portuguesa e africana no processo de colonização”, enfatiza.
Entre gerações
A tradição é passada entre gerações. Assim é na família de Jovita Maria Correia, de 60 anos, do quilombo Mata dos Crioulos, em Diamantina.
A mulher conta que desde a infância acompanhava os parentes no alto da serra. “Meus pais me levavam desde bebê para colher flor na chapada. Sempre foi a renda da família”.
Agora, a quilombola passou os conhecimentos ancestrais para os sete filhos, que já atuam na plantação de roças e coleta de flores.João Roberto Ripper / Divulgação
Algumas famílias permanecem de três a seis meses no campo para fazer a colheita
Guardiões
Os apanhadores de sempre-vivas se intitulam guardiões tanto das sementes das flores como de outras plantas agrícolas tradicionais. Estudos da Universidade dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) mostram que eles exercem um papel importante na conservação das espécies, garantindo a diversidade biológica do ecossistema.
Segundo a pesquisa, os mais de 90 tipos de sempre-vivas já identificados foram preservados pelas comunidades. A contribuição está na técnica ancestral de fazer a coleta, prática da agroecologia, rotatividade no plantio das roças e o uso de sementes nativas, cultivadas ao longo de gerações.
“Os apanhadores de sempre-vivas são os guardiões da biodiversidade e da água locais, que com o seu modo de vida têm preservado esse território até hoje”, destaca Maria de Fátima Alves, apanhadora e membro da Codecex.
Ela considera a candidatura ao selo de Patrimônio Agrícola Mundial um grande passo para o reconhecimento e valorização dessa cultura milenar. Segundo ela, são famílias que lidam com mais de 200 espécies de flores, folhas e frutos secos do cerrado, além da plantação de roças tradicionais e da criação de gado curraleiro (primeira raça de bovino trazida para o Brasil na época da colonização) e outros pequenos animais.
Prática
O cultivo das roças é feito no período chuvoso. Já a coleta de flores, na época da seca. Algumas famílias permanecem de três a seis meses nos campos para colher sempre-vivas e fazer o manejo do gado. No período, elas residem em “lapas” (grutas de formação rochosa). Algumas comunidades vendem as flores in natura e outras produzem peças artesanais e acessórios como brincos.
O governo de Minas Gerais criou um grupo de apoio ao sistema agrícola tradicional dos apanhadores de sempre-vivas integrado pelas secretarias de Estado de Desenvolvimento Agrário (Seda), de Educação (SEE) e de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac), além da Emater, Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais, Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha) e Fóruns Regionais.
Uma das medidas já em execução é a abertura, pelo Iepha, do processo administrativo de reconhecimento do sistema como patrimônio material e imaterial do Estado. “O governo mineiro sinaliza a valorização das práticas agrícolas tradicionais dessas comunidades como uma política pública essencial para garantia dos direitos humanos e socioambientais”, afirma Marcilene Ferreira da Silva, assessora da Seda e coordenadora dos trabalhos.