(Maurício Vieira)
Quando conseguiu fugir da casa onde era mantida em cárcere privado pelo próprio companheiro, a educadora social Cecília Gomes encontrou abrigo na Casa Sempre Viva, em Belo Horizonte, onde foi acolhida junto com o filho de 2 anos à época. Desde 2009, o espaço já foi refúgio de mais de 1.000 mulheres vítimas de violência doméstica na capital que estavam correndo risco de morte.
A história de Cecília se une à própria história da Casa que, antes de 2009, funcionava como um abrigo vinculado à prefeitura e, depois, tornou-se um espaço protegido de acolhimento a mulheres vítimas de violência e dos filhos delas, por meio do Consórcio Mulheres das Gerais.
Quando chegou ao espaço, há cerca de duas décadas, Cecília, hoje com 42 anos, colecionava traumas, feridas físicas e psicológicas, e tinha medo. Hoje, a mulher empoderada e sorridente de longos cabelos cacheados, maquiagem impecável e sorriso constante, ajuda outras mulheres na Casa Sempre Viva como educadora social, e não se parece em nada com a Cecília que foi privada da vaidade, autonomia e liberdade durante quatro anos enquanto sofria todo tipo de violência nas mãos do ex-marido.
"Muitas vezes eu nem sabia que aquilo era violência contra a mulher, não tinha nem Lei Maria da Penha na época. Eu me sentia até culpada. Não esqueço de uma vez que apanhei porque o meu arroz não tinha ficado soltinho e, quando chamaram a polícia, o policial me disse: 'Mas, ah, Cecília, ele estava trabalhando, né? Tem que fazer a comida pra ele mesmo'", lembra.
Primeiros sinais
A violência começou de forma sutil. Quando conheceu o ex-companheiro, ele era "tranquilo", mas reclamava das roupas que ela usava. Quando Cecília ainda trabalhava, ele insinuava que ela o estaria traindo se demorasse cinco minutos além do tempo usual para chegar em casa.
"Naquela época, essas coisas eram normais, afinal, ele é homem, né? A gente pensava. Mas, hoje, eu entendo que ali ele já demonstrava os primeiros sinais de violência", conta. Não demorou muito para que a agressão passasse a ser física, fazendo com que os próprios vizinhos se intimidassem a chamar a polícia, com medo do que o homem poderia fazer.
Foi sob o antiquado e equivocado lema "em briga de marido e mulher não se mete a colher", que o agressor, então, fez com que a mulher parasse de trabalhar e passou a deixá-la trancada junto com o filho em tempo integral.
"Eu não via a luz do Sol. Ele só deixava eu lavar roupa quando ele estava lá, porque o tanque ficava no quintal. O meu filho começou a ter problemas de saúde por ficar o dia inteiro confinado", recorda. Ela se lembra de, pouco antes do confinamento, ouvir a vizinhança comentando a seu respeito: "Diziam que eu era estranha, que não conversava com ninguém, que não falava nada". Maurício Vieira
"Ele tentou tirar o meu DIU com uma chave de fenda"
Foram seis meses sobrevivendo ao cárcere privado, até que Cecília teve uma grave infecção urinária e conseguiu abrir a fechadura da porta com uma faca para ir ao hospital ser atendida na emergência. Ao voltar para a casa, ela apanhou do marido por ter saído. E ele, para evitar novas "fugas", furou um buraco na porta e outro na parede, onde colocou uma corrente com cadeado.
"Logo que ganhei o meu filho, passei a fazer controle em um posto de saúde e coloquei um DIU escondido". O dispositivo intra-uterino, conhecido como DIU, é um método contraceptivo onde uma pequena haste em forma de Y é colocada dentro do útero.
"Acho que o objeto saiu do lugar e acabou causando a infecção urinária. Aí, quando eu cheguei em casa do hospital, contei para ele, que pegou uma chave de fenda e tentou tirar o DIU à força. Isso deve ter perfurado meu útero, porque tive problemas que só fui tratar após ir para o abrigo", expõe.
Após o episódio, Cecília entendeu que era questão de tempo perder a vida pelas mãos do companheiro. Ela conseguiu contato com uma vizinha, subindo em um banquinho e chamando a mulher por uma janela. Um dia, a vizinha decidiu atender aos apelos e chamar alguém para arrombar o cadeado.
Cecília, que já havia separado uma pastinha de documentos, viu a porta abrir, pegou o filho e saiu de casa sem nem saber para onde ir. "Mas de uma coisa eu tinha certeza: eu nunca mais poderia voltar". Maurício Vieira
Para onde ir?
Como Cecília, muitas mulheres vítimas de violência doméstica têm medo de fazer a denúncia, e depois voltar para a casa onde vive com o agressor e morrer. Apesar de o decreto 8.086 de 2013 instituir uma Casa da Mulher Brasileira em cada Estado, que seria um centro de acolhimento com serviços multidisciplinares para o atendimento de mulheres vítimas de violência, somente sete foram construídas no país e, atualmente, apenas duas permanecem em funcionamento.
Mas, em Minas Gerais, o Consórcio de Promoção da Cidadania Mulheres das Gerais acaba preenchendo esta lacuna. Trata-se de uma parceria com o poder público, instituída em 2009, e que, dentre outras ações de enfrentamento e combate à violência de gênero, prevê o acolhimento emergencial para mulheres em situação de violência doméstica que procuram as delegacias especializadas ou um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
Atualmente, fazem parte do consórcio 12 municípios e outros três estão em processo de adesão. "A Casa Sempre Viva em BH é uma das iniciativas do consórcio e se constitui em um espaço onde mulheres vítimas de violência recebem apoio, orientação psicológica, de saúde, além do encaminhamento de serviços jurídicos para tratar as questões do divórcio, guarda dos filhos, por exemplo. É um local protegido e o endereço permanece em sigilo para garantir a segurança das mulheres abrigadas", explica a superintendente do Consórcio e coordenadora da Casa Sempre Viva, Karla França.
Com capacidade para 14 famílias, o local abriga, atualmente, 20 mulheres e 25 crianças. "São acolhidas mulheres que estão em um momento de desespero, quando suas vidas estão ameaçadas, e claro, podem levar seus filhos. Porque imagina, a mulher já vive a situação de ter que sair do domicílio para salvaguardar a integridade física, imagina se ela tivesse ainda que deixar os filhos. Atualmente, estamos além da nossa capacidade, mas é importante acolher todas as vítimas que chegam, sejam elas mulheres em situação de rua, trans, em dificuldades financeiras ou não. Porque violência de gênero não escolhe classe social", afirma.
Construção de saída
No abrigo, há três modalidades de atendimento. Uma em que a mulher é acolhida de forma emergencial e pode ficar até 96 horas, outra em que o acolhimento de curto prazo dura até 20 dias e há também o de 90 dias. Mas, dependendo da situação da mulher, o prazo acaba se estendendo por tempo indeterminado. As profissionais que atuam ali acolhem as mulheres, fazem a triagem do atendimento e ainda traçam uma construção de saída para as vítimas.
"A gente procura meios, parentes, dentro ou fora do Estado, que possam receber essa mulher em segurança e, assim, fazemos o contato e estabelecemos a conexão. No caso deste familiar estar em outro município ou fora de Minas, também entramos em contato com os agentes públicos destas regionais para que o trabalho de acompanhamento continue sendo feito com a vítima. Desta forma, o consórcio promove a transferência desta mulher arcando com os custos envolvidos, como o transporte", conta Karla França.
A porta de entrada para a Casa são as delegacias onde as vítimas fazem a denúncia ou os Creas. Quando o agente identifica que a mulher corre risco de morte se voltar para a residência, ela é encaminhada para o local. Além do atendimento multidisciplinar que recebe ali, a mulher também passa por cursos e oficinas de capacitação, para identificar suas potencialidades e ter a possibilidade de manter uma renda ao sair de lá. Arquivo Pessoal Alguns dos trabalhos de artesanato que as mulheres aprendem no centro de acolhimento
Recomeço
Foi no abrigo que Cecília aprendeu artesanato e os ofícios de cabeleireira e manicure. Com o dinheiro adquirido na venda de tapetes de crochê e outros itens, ela começou a traçar a independência financeira. Após sair da Casa Sempre Viva, começou a trabalhar em um salão de beleza. Cerca de um ano depois, passou em um processo seletivo e foi chamada para ser auxiliar de serviços gerais no centro de acolhimento. Hoje, ela é educadora social no local e uma das profissionais responsáveis por cuidar e proteger outras mulheres.
"É o maior orgulho que eu tenho, porque nutro um amor muito grande por este lugar. Eu quero cuidar de todas elas. Tem umas meninas que chegam lá tão pra baixo que eu só quero abraçá-las e protegê-las. E muitas têm a autoestima visivelmente afetada. Eu sempre fui muito vaidosa, exceto quando passei por aquele processo de violência, mas hoje ninguém mais vai tirar isso de mim. Então, eu incentivo elas a se cuidarem, arrumar o cabelo, passar uma maquiagem, sentirem-se lindas como de fato são", conta Cecília. Maurício Vieira
Dados da violência
Em Minas, 16 mulheres são agredidas a cada hora por causa de seu gênero. Somente nos seis primeiros meses deste ano, 73.457 mulheres foram vítimas de violência doméstica no Estado. Além disso, 64 mulheres já perderam a vida este ano e outras 104 escaparam por pouco da morte.
O Instituto Maria da Penha (organização não governamental sem fins lucrativos que estimula e contribui para a aplicação integral da lei) mantém um "relógio da violência" que mostra que, no Brasil, a cada dois segundos, uma mulher é vítima de violência física ou verbal. Isso significa que, enquanto você lia esta matéria, 180 mulheres eram agredidas por seus companheiros ou ex-companheiros em algum lugar do país.
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