Demandas por saúde em Minas se multiplicam na Justiça

Aline Louise - Hoje em Dia
24/08/2015 às 06:37.
Atualizado em 17/11/2021 às 01:28
 (Eugenio Moraes)

(Eugenio Moraes)

Em doze anos, o gasto do governo mineiro para atender demandas de saúde obtidas pelos usuários graças à Justiça aumentou mais de mil vezes. Em 2002, o Estado desembolsou R$ 164,3 mil com as ações, mas, em 2014, o montante foi de R$ 172,2 milhões. Na opinião de especialistas, o crescimento escancara a deficiência da administração pública em fornecer saúde universal e integral, como prevê a Constituição Federal, e estabelece injustiças entre quem pode e quem não pode recorrer à via judicial.

Atualmente, na Justiça mineira existem mais de 19 mil processos reivindicando assistência pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Para muitos, como o vendedor Joceir Nogueira, de 54 anos, essa é a única saída para conseguir atendimento na rede pública.

Portador de retinoplastia diabética, ele corre contra o tempo para não perder a visão. Para tratá-la, Joceir precisa, mensalmente, fazer aplicações de um medicamento que pode custar mais de R$ 3 mil, fora o valor do procedimento.

Apesar de já ter conseguido três liminares que obrigaram o Estado a fornecer a assistência, cada decisão judicial limita o número de aplicações. “Eu preciso de tratamento continuado”, observa o vendedor.

Na tentativa de manter o fornecimento do remédio por mais tempo, ele ingressou com novo processo, dessa vez na Justiça Comum, e não no Juizado Especial, porque o valor da ação é maior – assim como a espera: demorada e angustiante. “Estou aguardando sair o documento há uns 50 dias, mas já percebo que a minha visão está piorando. Já perdi 80% da capacidade do olho direito”, conta, emocionado. “Sinto revolta, estou até engasgado. A cada dia que passa estou pior, como se eu estivesse morrendo”.

Direito universal

Obtida por meio judicial, a “saúde está no lugar errado”, afirma o desembargador Renato Dresch, coordenador do Comitê de Saúde de MG do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Para ele, a judicialização tem crescido especialmente por causa do subfinanciamento e da má gestão do SUS. “A Constituição garante o acesso universal e atendimento integral à saúde. Por isso, os usuários ganham grande parte das ações”, frisa.

Por meio de nota, a Secretaria Estadual de Saúde diz que o aumento da judicialização está relacionado a diversos fatores além da “carência no atendimento”, como ao lançamento de novas drogas ainda não introduzidas no sistema público, por exemplo.

Especialista afirma que, apesar de ser um direito, ingressar com ação promove desigualdade

Recorrer à Justiça para se conseguir tratamento médico é um direito, mas ao mesmo tempo promove desigualdade, diz a diretora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Eli Iola Gurgel Andrade. Para ela, a judicialização implica numa “deformação”, porque o alto gasto com as ações corresponde a um número restrito de pessoas que, na verdade, são atendidas. “Isso reforça a desigualdade entre quem pode e quem não pode acionar a Justiça”.

E poder, nesse caso, não é apenas uma questão de dinheiro, já que a Defensoria Pública assiste muitos usuários que não têm condições de arcar com advogado. Apenas nesta área da saúde são cerca de 70 atendimentos por semana.

“Poder é também ter acesso à informação”, afirma a cuidadora de idosos Janne Junqueira, de 52 anos. Ela conseguiu, via judicial, acesso aos medicamentos que precisa para controlar complicações sérias que teve com a diabetes, como pequenas fraturas espontâneas dos ossos, que podem levar a amputação dos membros.

Porém, Janne sabe que não é assim com todos os pacientes do SUS. “É muito triste ter que entrar na Justiça. Eu ainda tenho esclarecimento, e consegui. Mas quem não tem? Tem muita gente mais humilde que não sabe nem que existe Defensoria Pública. Eu preciso muito desse medicamento, mas há quem esteja em situação pior, morrendo por falta de recurso e conhecimento do direito que tem como cidadão”.

Programação

Mestre em saúde pública, o enfermeiro Fabrício Simões lembra que o SUS tem uma organização que é afetada pela judicialização. “Às vezes chega uma ação inesperada, demandando recursos que não estavam programados. O dinheiro que vai para atendê-la vem do mesmo orçamento para assistir a todos os usuários do SUS. Aí você coloca o direito individual versus o direito coletivo”.

Por meio de nota, a Secretaria de Estado de Saúde informou que o custo com a judicialização, nos últimos anos, representa, em média, 5% do orçamento total da pasta. “Esse recurso poderia contribuir para projetos prioritários, como a ampliação e melhoria da Atenção Básica e a criação de centros de especialidades”, diz o texto.

Para União, indústria se vale da Justiça para obter vantagem

Se por um lado uma determinação judicial garante assistência à saúde para muitos cidadãos, por outro o mecanismo também seria usado pela indústria farmacêutica para introduzir novos tratamentos no “cardápio” do SUS. Com esse argumento, o Ministério da Saúde passou a defender a restrição da judicialização.

Segundo o secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da pasta, Adriano Massuda, tem-se visto nos últimos anos “a utilização da judicialização como uma plataforma de lançamento de medicamentos, procedimentos e materiais médicos hospitalares que, muitas vezes, não têm evidência científica, segurança nem eficácia comprovadas”.

Para ele, a incorporação de novas tecnologias deve obedecer à regras claras, além de passar por análise de “custo-efetividade”, que comprove a vantagem para pacientes e o país. O secretário ainda diz que o governo não é contra, “em hipótese alguma”, que o brasileiro acione a Justiça para garantir um direito.

Análise

O desembargador Renato Dresch pondera que há uma “razão parcial” no argumento da União. Entretanto, ele enfatiza que a saúde é um direito fundamental, prioritário e não pode sofrer restrições.

“Em princípio não devemos fornecer medicamentos não registrados. Mas em situações excepcionais não podemos deixar de avaliar. Se um novo remédio, mesmo ainda sem registro pela Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária), pode ser a única chance de sobrevida de alguém, isso deve ser considerado”, observa.

O coordenador da Defensoria Pública Especializada de Saúde, Bruno Barcala Reis, reforça o direito constitucional de ingressar com ação mediante lesão ou ameaça de lesão de direito. Porém, acha importante as iniciativas que tentam evitar a via judicial.

Segundo ele, a Defensoria Pública tem, desde 2011, um termo de cooperação técnica com os governos de BH e de Minas para se tentar acordos entre pacientes e poder público. Por meio desse trabalho, é possível evitar o processo em cerca de 25% dos casos.

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