ECA estabelece regras claras para garantir cidadania de jovens

Raquel Ramos e Renato Fonseca - Hoje em Dia
11/07/2015 às 08:15.
Atualizado em 17/11/2021 às 00:51
 (Flávio Tavares)

(Flávio Tavares)

“Em que medida estamos respeitando o direito da criança ao lazer?”. O questionamento da promotora Paola Domingues Botelho Reis de Nazareth vai ao encontro da imagem acima. No mundo ideal, as crianças vivem momentos idílicos como este, como brincar no parque sob o olhar protetor da família.   Considerada uma das maiores especialistas em assuntos ligados à juventude em Minas, Paola coordena o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CAO-DCA), do Ministério Público.   Categórica, a promotora engrossa o coro de que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) oferece mecanismos claros para a efetivação do acesso ao lazer, à cultura, à educação e a outras garantias básicas. “Os jovens são sujeitos de direitos, mas nem sempre a lei é cumprida”, afirma.   ‘Falta vontade política’ Direitos previstos na lei dependem do estado e das prefeituras, diz promotora   Formada em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Paola de Nazareth está prestes a completar dez anos de Ministério Público. Já atuou no Vale do Jequitinhonha e Mucuri e, desde 2013, está no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CAO-DCA), em BH. Neste ano, assumiu a coordenação do órgão.   O ECA chega aos 25 anos. É uma data para ser celebrada?   Sim. O Estatuto criou novos paradigmas no que diz respeito à proteção da criança. Antes de 1990, ano em que a lei foi publicada, e antes da Constituição de 1988, vivíamos sob o Código de Menores, que via a criança e o adolescente só sob o ponto de vista da marginalização. A legislação da época se preocupava apenas com jovens em situação chamada de “irregular”. Então, o objetivo principal era tratar esse público a partir de uma ótica não necessariamente de proteção, mas de institucionalização. Não existia uma visão de que a criança e o adolescente eram sujeitos de direitos. Isso veio com a constituição e, depois, com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Hoje não se fala mais em assistencialismo ou em oferecer à criança algo bom porque o Estado é bom, mas sim em garantir direitos legalmente adquiridos.   Ato infracional, trabalho infantil, evasão escolar, abandono, maus-tratos. Existe alguma demanda que chame mais a atenção?   Basicamente, o Estatuto se divide em três partes. Uma delas trabalha com a prevenção da violação de direitos. A outra trata a questão de crianças vítimas de violações de direitos. E também aborda o tratamento aos adolescentes autores de atos infracionais. Eu não diria que o ECA foca mais em um ou em outro ponto. Dentro da situação de crianças vítimas de violação de direitos, traz uma série de medidas protetivas que deveriam ser aplicadas, inclusive administrativamente, pelo conselho tutelar, de forma a combater aquela situação. Na parte da medida socioeducativa, o ECA e o Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) são mais detalhistas.   A sociedade está sempre em transformação. Passados 25 anos, a lei ainda é a mesma? São necessárias readequações?   Ao longo desses 25 anos, o ECA sofreu algumas modificações. Recentemente, tínhamos a lei 12.010, que mudou muito a questão da adoção, no que diz respeito ao acolhimento institucional. Criaram-se novos parâmetros. Regras antes não muito bem esclarecidas pelo Estatuto agora estão claras.   Como assim?   Foi reforçada a questão dos cadastros nacional e estaduais de adoção. Agora, a lei faz expressa referência ao procedimento para a adoção internacional. Matérias que antes eram muito pouco abordadas passaram a ser tratadas após a lei 12.010.   Mas o ECA ainda carece de outras readequações? O que a senhora citaria de principais pontos a serem revistos?   A interpretação que faço é a de que o ECA continua sofrendo modificações, porém, sem ter sido, de fato, implementado como previsto inicialmente. O ECA é uma lei muito interessante, elogiada, bastante completa. Não estou dizendo que não precisa sofrer alterações. Acho que melhorias sempre são possíveis. Porém, muitas vezes, se houvesse mudança, poderíamos estar alterando regras sem antes experimentá-las em sua eficácia. Nós ainda dependemos de inúmeras políticas e serviços públicos que precisam ser implementados para se concretizar os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente.   Sempre se escuta esse discurso, não só da senhora, mas de educadores, conselheiros tutelares, juízes e pessoas engajadas nas causas sociais, de que a lei é ótima, mas não é colocada em prática. Por que? O que falta?   Podemos sintetizar falando da falta de vontade política de se criar ou aprimorar determinados serviços públicos necessários. Há também questões orçamentárias e falta de prioridade. A prioridade absoluta está prevista na Constituição, mas não é colocada em prática. É difícil encontrar um órgão de governo que efetivamente trabalhe com a ideia de prioridade absoluta, que respeite o encaminhamento dos serviços públicos, respeite a prioridade orçamentária e a definição de políticas para a criança. Por exemplo, na área da educação, existe no Estatuto uma séria de direitos que são resguardados: transporte escolar, alimentação, material. E todos os dias nos deparamos com reportagens sobre a carência e a baixa qualidade desse transporte nas áreas rurais. Isso aponta uma má gestão da política e a falta de investimento. Na saúde, ocorre o mesmo.   O conselho tutelar é uma das principais portas de entrada para receber o jovem que teve os direitos violados. Essas instituições estão preparadas para garantir esses direitos?   É difícil, pois, de uma maneira geral, percebemos que é um órgão pouco valorizado. Os municípios investem pouco nesses conselhos. Muitos trabalham em locais sem estrutura, sem privacidade para o atendimento das crianças e dos adolescentes. Falta material, internet e, principalmente, qualificação dos conselheiros para o exercício da função. São vários conselhos que encontram-se nessa situação.   Mas o Ministério Público pode fazer algo? Não só pelo conselho tutelar, mas por todos os órgãos que deveriam garantir esses direitos dos jovens?   O Ministério Público propõe ações, instaura procedimentos. Em muitas comarcas existem procedimentos instaurados com esse objetivo: averiguar as irregularidades e negociar com o Executivo. Firmar Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com o objetivo de o município passar a garantir a estrutura mínima de trabalho para o conselho tutelar, assim como a outros serviços, como é o caso das medidas socioeducativas em meio aberto, por exemplo. Temos trabalhado em todos esses serviços para garantir uma melhoria da estrutura, seja por meio dos TACs e, nos casos em que essa atuação extrajudicial não consegue ser resolutiva, por meio da propositura de ações judiciais.   Quais são as principais dificuldades de aplicação dessas medidas socioeducativas?   A prestação de serviço comunitário e a liberdade assistida são de responsabilidade dos municípios. E as dificuldades são de toda ordem. Grande parte das cidades não tem estrutura pensada de execução das medidas. Não seria um problema de falta de estrutura, mas de completa inexistência do serviço. Por outro lado, aquelas que têm o serviço sofrem com a falta de equipe técnica. E ainda, quando acontece de ter uma equipe técnica específica, ela é mal qualificada. Os municípios que têm um bom serviço de medidas socioeducativas em meio aberto são raros.   Se é raro, fatalmente esse adolescente infrator poderá ser o bandido de amanhã?   Sem dúvida. O Estatuto criou as medidas socioeducativas, que têm um viés diferente da pena. O objetivo é a ressocialização. É trabalhar com um público que está em situação de desenvolvimento, que tem uma maior permeabilidade às mudanças. Essa é a diferença do adolescente. E por isso o Estatuto propõe um atendimento diferenciado para o adolescente autor de ato infracional, investindo na conscientização do menor sobre o seu ato ilícito e na garantia de direitos, a fim de que ele seja capaz de pensar em alternativas para a própria vida após o cumprimento da medida. Agora, se não conseguirmos atuar nesse momento de forma eficiente, as chances de ele continuar em uma vida de marginali-zação e de cometimento de ilícitos é enorme.   Mas nos casos mais graves, só as internações, conforme prevê a lei, são capazes de recuperar esses jovens?   Só a internação não tem um poder. Ela não é um produto mágico, capaz de transformar o adolescente. Depois do cometimento do ato ilícito, devem existir políticas básicas do local para onde o adolescente vai retornar. Ali devem estar sendo resguardados inúmeros direitos que, muitas vezes, ele não teve antes de ser internado, para garantir que seja capaz de traçar uma nova trajetória.   A redução da maioridade penal é solução?   Não. Sou totalmente contra. Acredito realmente que não vai resolver em nada. Os argumentos de hoje para aprovar a redução da maioridade é que vivemos em um país com alto índice de violência, que temos um grande problema de segurança pública, de insegurança das pessoas e que, então, a responsabilização do adolescente, a criminalização dele, vai resolver. Acredito que nada irá mudar se a gente colocar esses meninos de 16 anos nos presídios. Muito pelo contrário, porque o percentual de adolescentes no qual a medida socioeducativa é efetivamente capaz de ressocializar é grande, chega a mais de 70%.   OLHO: “Os atos infracionais estão na ponta do iceberg justamente porque a proteção dos direitos dessas crianças não aconteceu. Então é claro, tudo aquilo se torna mais difícil de ser solucionado à medida que a situação vai se agravando”

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