(Carlos Henrique)
Universal, equânime e integral: assim deve ser o SUS, segundo a Constituição. Para isso, é preciso superar o subfinanciamento do sistema. Entretanto, com a crise econômica e a previsão de cortes do governo federal no orçamento para o ano que vem, a situação pode se tornar dramática.
Segundo o Ministério da Saúde, o investimento no SUS em 2016 será 10% menor que os R$ 98,4 bilhões de 2015. Ou seja, haverá redução de R$ 9,8 bilhões.
Diante deste cenário, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), emitiu, em novembro, uma nota de repúdio e indignação. De acordo com a entidade, os procedimentos mais afetados serão os exames de alta complexidade, cirurgias, consultas especializadas, terapia renal substitutiva e oncologia.
Justamente os que são considerados de difícil acesso pela população, os gargalos do SUS, conforme o Hoje em Dia mostrou na série de reportagens que se encerra nesta sexta (18). Segundo o Conasems, a redução vai gerar “desassistência com reflexos desastrosos sobre a saúde das pessoas”.
O secretário municipal de Saúde de Belo Horizonte, Fabiano Pimenta, reforça que a queda no financiamento é preocupante. “O corte do Aqui tem Farmácia Popular, por exemplo, vai comprometer a sustentabilidade de determinados programas. Vamos ter que pensar em alternativas, considerando que as necessidades de saúde da população são crescentes”, afirma.
Imposto
O retorno da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF), extinta em 2007, para financiar a saúde, em análise pelo Congresso Nacional, seria uma alternativa. “A frente nacional de prefeitos tem a proposta de retorno do imposto e que seja exclusivo para saúde”, diz Pimenta.
Segundo o secretário, com os cortes de verba federal, os municípios ficarão ainda mais sobrecarregados. “Temos na Secretaria de Saúde de BH um déficit mensal relacionado ao pagamento de média e alta complexidade, de R$ 8 milhões a R$ 10 milhões por mês. O município chegou ao limite, não há mais como aumentar a assistência se o recurso não expandir”, admite. A capital, de acordo com Pimenta, investe 20% do seu orçamento na saúde. Por lei, o investimento deve ser de 15%.
A superintendente de Atenção Primária à Saúde da Secretaria de Estado de Saúde, Maria Tourci, doutora em saúde pública, também defende a volta da CPMF. Segundo ela, a despeito dos problemas de gestão do SUS, garantir recursos é fundamental. “Dizer que o SUS não funciona a contento por falta de gestão, do meu ponto de vista, é uma falácia. Temos histórico de subfinanciamento”, critica.
O consultor em saúde pública Eugênio Vilaça Mendes não acredita que mais imposto possa resolver o problema. “Quando tinha a CPMF, apenas 40% ia para saúde. Ter o tributo não significara necessariamente gastar mais com saúde”.
Resposta
Em nota, o Ministério da Saúde garante que tem assegurado investimento crescente para o SUS. “O volume de recursos federais repassados a todos os estados e municípios do país nos últimos 11 anos cresceu 197%, passando de cerca de R$ 20 bilhões, em 2004, para mais de R$ 59 bilhões em 2014”, afirma.
Eugênio Vilaça critica a possível volta da CPMF: "Não significará necessariamente mais gasto com saúde" (Foto: Reprodução)
‘Sociedade não está convencida da eficiência do sistema’
Para que o quadro da saúde no Brasil mude, Eugênio Vilaça sugere uma mobilização da sociedade. É preciso optar pelo modelo desejável e quanto se quer pagar por ele.
“No Canadá, os deputados e senadores usam o sistema público. Os nossos políticos têm planos pagos pela sociedade, portanto, discutir o SUS não diz respeito a eles”, aponta.
Segundo o consultor, a sociedade ainda não está convencida de que o modelo público é o melhor, apesar de todas as pesquisas do mundo mostrarem que ele é mais barato e mais equitativo. Países como Brasil e Estados Unidos mantêm sistemas fragmentados: parte público e parte privado.
Eugênio ressalta que, neste sistema misto existe uma “competição predatória” entre os dois setores. Segundo ele, os planos de saúde atendem cerca de 25% da população. O SUS, em certas áreas, como vigilância sanitária e política de combate à dengue, é universal.
Na atenção médica, cerca de 50 milhões de brasileiros contam com planos de saúde, enquanto 150 milhões de pessoas dependem exclusivamente do SUS. No sistema privado, o gasto per capita é duas vezes e meio maior que no público.
“O pessoal que compra plano de saúde desconta integralmente o que paga no seu imposto de renda. Portanto, de certa forma, a população subsidia que paga por esse serviço. Isso significa dinheiro que se desconta do orçamento do estado. No final, mais uma vez, são os que podem menos financiando os que mais podem”, explica. Para Mende, não se trata de uma competição direta, “mas um subsídio cruzado, perverso”.
Desvantagem
A especialista Maria Tourci cita outro aspecto desvantajoso para o SUS, nessa relação com a saúde privada. “Muitos usuários de planos acabam usando também o SUS sem que as empresas ressarçam o saúde pública por isso”.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que junto com a Agência Nacional de Saúde Suplementar vem ampliando o processo de ressarcimento ao SUS. “Neste ano, começou a ser cobrado o reembolso dos exames e terapias ambulatoriais de alta e média complexidades. Com isso, é esperado um incremento de 149% no volume de procedimentos cobrados”.
A Associação Brasileira de Medicina de Grupo, que representa os planos de saúde, foi procurada pela reportagem para comentar estas questões, mas não respondeu.
Percentual pequeno de verba pública compromete qualidade
O montante gasto com saúde no Brasil não é pouco, avaliam os especialistas. São 9% do Produto Interno Bruto (PIB), equivalente a países como Inglaterra e Canadá. O problema é que o investimento público é de apenas 45,7% do total, percentual considerado pequeno. A maior parte (54,3%) é do setor privado.
Segundo o consultor Eugênio Vilaça Mendes, em países onde a saúde é mais satisfatória, o gasto público representa mais de 70% do bolo. Segundo ele, o gasto privado tem dois componentes: investimento em planos de saúde e os recursos diretos, das famílias que compram remédios em farmácias ou pagam consultas particulares, por exemplo.
De acordo com o especialista, do total de recursos privados aplicados em saúde no Brasil, o maior percentual é neste último componente: 57,8%. “O problema é que isso leva a uma desigualdade muito grande, porque estes gastos privados diretos impactam mais a renda das famílias pobres do que das ricas. Em termos percentuais, pobres gastam mais com saúde do que os ricos. Isso tem uma dimensão terrível do ponto de vista da iniquidade social”.
Municipalização
A professora da UFMG Eli Iola Gurgel Andrade, integrante da diretoria da Associação Nacional de Saúde Coletiva, acrescenta que o SUS “municipalizou” a saúde, e a União foi se “perdendo a responsabilidade” sobre o financiamento e a organização do sistema. “Chegamos a uma situação preocupante. Do gasto público, aproximadamente 50% é da União, o restante é dividido entre os outros entes federados”.
Segundo Mendes, entre 2007 e 2014, enquanto os gastos do Ministério da Saúde subiram 40,4%, os dos estados cresceram 49,4%, e dos municípios 71,6%. “Os estados e municípios já ultrapassaram o limite prudencial. A saída é aumentar o gasto federal. Isso não tem sido possível em nenhum dos últimos governos, apesar de várias tentativas, pois o Congresso Nacional não aprova”.
Além disso
Enquanto o governo federal prevê corte no orçamento para a saúde no ano que vem, o governo de Minas e a Prefeitura de Belo Horizonte garantem que os investimentos no setor vão crescer.
Para Minas, recursos do Fundo Estadual de Saúde, usados para assegurar o mínimo constitucional de 12% que o Executivo deve investir, terá aumento de 7%, passando de R$ 4,7 bilhões, em 2015, para R$ 5,1 bilhões no ano que vem.
Na capital, o orçamento da saúde subirá 8,4%, saltando de R$3,6 bilhões para R$ 3,9 bilhões. Por lei, os municípios devem investir no mínimo 15% de suas receitas em saúde.
De acordo a legislação, o governo federal fica obrigado a investir na saúde anualmente o mesmo que aplicou no ano anterior, mais o percentual de variação do Produto Interno Bruto (PIB).
O Ministério da Saúde afirma que “em nenhum momento o governo federal diminuiu a verba empregada para a saúde pública em todo o país”. De acordo com o órgão, na última década, o orçamento federal executado exclusivamente em ações e serviços públicos de saúde quase triplicou.
Especificamente para a atenção básica, prioritária para o governo federal, o Ministério Federal afirma que foi repassado a estados e municípios, além de prestadores de serviços, mais de R$ 14 bilhões em 2014. Esse valor representa 15% do orçamento federal executado em ações e serviços públicos de saúde no ano passado.