(Hoje em Dia)
Aos 16 anos, o então jovem Angelo Machado – hoje, médico, professor e aclamado autor da peça “Como Sobreviver em Festas e Recepções Com Buffet Escasso" – sempre ouvia comentários meio debochados dos amigos intelectuais do tio: “O sobrinho do Aníbal vem para o Rio de Janeiro e em vez de ir para a praia vai é estudar bichinho”. O rol de amigos em questão, que tinha artistas do quilate de Manuel Bandeira e Jorge Amado, talvez nem suspeitasse de que aquele mineirinho “CDF” viria a ser o responsável por uma das coleções de insetos mais importantes das Américas. E é este acervo, fruto de 65 anos de trabalho, que foi doado nesta terça-feira (30) à UFMG.
O bem relacionado tio, no caso, era o escritor e teatrólogo mineiro Aníbal Machado (1894-1964), radicado no Rio de Janeiro com a família. Ele é autor de livros como “Tati, a Garota e Outros Contos”, que chegou a inspirar a criação da novela da Rede Globo, “Felicidade” (1991).
A sorte é que os comentários vindos dos ilustres participantes das chamadas “Domingueiras do Aníbal” não desanimaram o estudioso Angelo. Prova deste empenho poderá ser vista, em breve, quando estará disponível para os estudiosos de hoje, a coleção pessoal do “dr. escritor” constituída de, exatamente, 35.250 exemplares de 1.052 espécies de libélulas. “Ou seja, uma espécie tem vários exemplares”, explica.
“Aníbal Machado era irmão do pai. Eu tinha 16 anos e peguei umas libélulas em uma fazenda e queria saber sobre elas. Foi então que minha prima, a filha dele, Lúcia (Machado de Almeida, também teatróloga), disse para eu levar os bichos ao professor Newton Dias dos Santos, que era especialista em libélulas, no Museu Nacional, no Rio”, lembra sobre os primórdios do interesse pelos insetos.
E Machado foi. Chegando ao Museu, o professor Newton teria sugerido para que o próprio jovem procurasse as classificações dos insetos que achou e que, com isso, aprendesse o ofício. “Amanhã vejo se você errou ou acertou”, lembra, sobre os exercícios científicos improvisados que recebeu. Desde então, as férias do jovem estudante em terras cariocas tiveram outras diversões, mesmo que longe da areia e das ondas do mar.
Ânsias maternais
“O nome mais comum pelo qual as libélulas são conhecidas é 'lava-bunda'”, diz o professor. Em outros lugares, lembra, o delicado inseto de voo rápido e cauda longa também é conhecido como “helicóptero” ou “cavalo de judeu”.
Machado explica que a principal característica da libélula é voar sempre perto da água. Daí a justificativa para o nome pouco elegante com o qual alguns pescadores a batizaram. Este voo rasante é para que estes insetos botem os ovos na água. “Ela é atraída pelo espelho da água. Muita gente já viu libélulas voarem sobre o capô de um carro pois parece um espelho também”.
Machado lembra que isso é tão constante nos meios urbanos que, certa vez, uma concessionária de carros o chamou para resolver um impasse: carros novos expostos ao ar livre eram alvos para que libélulas em ânsias maternais depositassem seus ovos. Porém estes ovos são envolvidos com uma substância natural ácida, parecida com gelatina, que corrói a pintura dos automóveis. O professor foi lá e resolveu a questão, mas na base da simplicidade: “Basta cobrir os carros”.
Libélulas bem-vindas
“Sabemos que esse material lhe é muito caro, uma coleção de referência para a ciência, construída desde o início da sua vida e que será de grande proveito para as gerações futuras”, comentou o reitor da UFMG, Jaime Ramírez. Professor emérito da UFMG, Angelo Machado, aos 81 anos, ainda exerce atividades no Departamento de Zoologia. Atualmente ele orienta uma dissertação sobre libélulas na Mata Atlântica.
A diretora do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), Andrea Mara Macedo, explica que se trata "da mais importante coleção desses insetos Odonata da América do Sul, com espécies das regiões neotropical, afrotropical, oriental, neártica, paleártica e australiana".
Andrea anuncia que a doação chega em um importante momento, quando o ICB está terminando de elaborar o projeto para o novo anexo que vai abrigar valiosas coleções taxonômicas, no Campus da Pampulha – entre elas, a de libélulas.
As mais belas do professor
“A libélula é o ser vivo mais bonito do mundo, mas depois da mulher, é claro! Também não vamos exagerar...”, comparou, em entrevista ao Hoje em Dia. Angelo Machado já foi professor de neuro-anatomia e, depois de aposentado, prestou novo concurso, mas para dar aula sobre o antigo hobby com as libélulas. Foi então que a literatura assumiu o lugar de segunda atividade do polivalente mineiro. Até agora, ele já publicou 37 livros e escreveu oito peças.
Neste ano, Machado lança o livro infantojuvenil “A Patinha Feia” (Editora Nova Fronteira). “É inspirada na história do 'Patinho Feio'. Está no feminino porque a feiura é pior para as mulheres. A mulher feia que não casa 'fica para titia'. Já o homem que não casa vira o 'garanhão'”, explica sobre um dos “cases” de buillying mais conhecidos da literatura.
Mas se as libélulas são tão caras assim ao autor, será que elas já invadiram algum livro dele? “Nunca tive libélula como protagonista. Nunca consegui bolar uma história realmente boa com elas”, admite. Já as borboletas... “Em agosto, lanço o livro de crônicas 'Borboletas Eróticas' (Editora Scriptum). Entendo um pouco de borboletas também”, avisa.
Bem humorado, no momento da assinatura da doação, Machado falou sobre a importância das libélulas. “Poderia citar muitas, mas a maior delas é fazer um velho feliz”. Além desta função "humanitária", as libélulas são importantes indicadores ecológicos da qualidade dos habitats - onde estão, se não for uma concessionária, pode acreditar, existe água fresca.
Predadoras, elas se alimentam de outros insetos, mas também servem como presa de pássaros e de outros animais. Esta característica tem feito com que elas sejam tema de estudos sobre a importância delas na diminuição da incidência de doenças transmitidas por mosquitos e varejeiras.
As libélulas do professor Angelo Machado, porém, têm outras missões. “Elas vão ficar aqui até arrumarem a sala de coleções da UFMG para servir de estudo a outros pesquisadores”, combina. E o “dr. escritor” quer ver um pouco desta realização de perto, já planejando viver até os cem anos, preferencialmente, sem parar de trabalhar e admirar seus "bichinhos", e avisa: “Se eu chegar ao 99 vou pedir prorrogação”.