(Flávio Tavares)
Em julho de 1987, Jordana tinha 11 meses e mal sabia engatinhar. Porém, a bebezinha já havia enfrentado uma impressionante história de vida. Mesmo tão frágil, a criança tinha passado por dez potenciais lares adotivos, mas, em todos, a tentativa de se construir um laço familiar foi desfeita. Sem condição de criar a filha, a mãe biológica batia à porta de desconhecidos na busca por socorro. Até que Anete Costa Silva abriu a casa e o coração para Jordana. Com a ajuda do então marido, Ednei Pereira, criou a filha adotiva com muito carinho e dedicação. “Meu cunhado me incentivou a tomar essa decisão, que foi uma das mais importantes da minha vida”, conta Anete, que acionou a Justiça para legalizar a situação e registrar a menina como filha. “Para nós, foi amor à primeira vista”, acrescenta. O tempo passou, Jordana cresceu, casou, formou-se em pedagogia e psicologia e se tornou mãe da pequena Beatriz, de 7 meses. “É o xodó da família, repleta de pessoas que me orgulho em dizer que amo”. Apesar do desfecho feliz na história de Anete, Ednei, Jordana e Beatriz, casos assim dificilmente voltarão a acontecer. Em vigor há duas décadas e meia, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tornou rígidas as regras para adoção. Embora lento e burocrático, o processo visa garantir integralmente o bem-estar da criança. Tempo perverso Antes da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o que valia era o texto do extinto Código Civil. Menos burocrática, a lei permitia que processos de adoção como o de Jordana fossem feitos por meio de escritura pública, sem necessidade de intervenção do Judiciário. A rapidez no processo, porém, representava riscos a quem estava prestes a ganhar um novo lar. Não havia garantias de direito ou de proteção a esses meninos, explica a advogada Fábia Andréa Bevilaque Valeiko, do Rio de Janeiro, especializada em direito da família e da criança e do adolescente. A facilidade para adotar abria brechas a casos de exploração sexual ou tráfico de órgãos. Bem diferente da situação atual. Com critérios mais rígidos e obrigatória interferência da Justiça, o procedimento ficou lento, justamente para assegurar o melhor interesse dos pequenos. Preteridos Essa morosidade, no entanto, está longe de ser o principal motivo para a permanência de centenas de crianças em abrigos. Breno*, de 17 anos, chegou a um deles ainda criança, aos 8. Apesar de muito menino, a idade pesava na escolha de potenciais pais adotivos. Infelizmente, a cor da pele também jogava contra a vontade de ser parte de uma família. Mesmo assim, o garoto jamais desistiu. Com apenas 9 anos, escreveu uma carta ao Juizado da Infância e Juventude de Belo Horizonte, revelando esse desejo. Ele tinha sido afastado há pouco tempo da casa da mãe por maus-tratos, assim como as duas irmãs, que foram adotadas. “Parece que não fui correspondido”, diz o agora adolescente. Ele faz questão de ressaltar a gratidão pelo tratamento recebido nos abrigos por onde passou. Por outro lado, reconhece que o sofrimento na infância e o longo período sem laços familiares o tornaram resistente a qualquer tipo de afeto. “Criei uma blindagem que nenhuma pessoa pode ultrapassar. Não consigo me apegar a ninguém”. Preteridos Pelas regras, Breno precisará encontrar um novo caminho a partir de 2016, quando completará o 18º aniversário. O sonho é trabalhar como músico, tocando o violão de apenas cinco cordas (uma arrebentou), que tem sido seu maior companheiro. O adolescente faz parte de um universo considerável de crianças e jovens rejeitados. Em Minas, são 3.446 pessoas interessadas em adotar. Na outra ponta, há 670 menores em abrigos, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Existem, portanto, cinco pais para cada criança. “Não existem bebês brancos e bonitos para todo mundo”, diz a advogada Fábia Andréa. O perfil da maioria, explica ela, não atende às idealizações dos adultos. Negros, deficientes físicos, maiores de 4 anos e grupos de irmãos são os mais preteridos. Nova perspectiva Grupos de apoio à adoção tentam conscientizar os pais que estão na fila. O objetivo é mostrar que o interesse maior nesse processo é o da criança, e não o de atender a um sonho pessoal do casal de ter uma família, explica Silvana do Monte Moreira, diretora jurídica da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção. Direto ao ponto Mudanças aperfeiçoaram legislação “Sempre tive a adoção como a menina dos olhos do Estatuto da Criança e do Adolescente”, afirma o desembargador Tarcísio Martins. O magistrado destaca que, em 2009 e 2010, após a implantação da lei nacional sobre o tema, o ECA passou por uma série de alterações. “Eu contei 231 modificações”, informa o magistrado, que por mais de uma década foi o juiz titular da Vara da Infância de Belo Horizonte. “Hoje, por exemplo, está definido que o menino adotado tenha todos os direitos do filho biológico, inclusive hereditários”, acrescenta. “Claro, a lei não é perfeita, mas é importante destacar que o ECA deixa claro que deve-se sempre prevalecer o que for do melhor interesse daquele menino ou menina”, diz Martins, que também já integrou a Associação Internacional Mercosul dos Juízes da Infância e da Juventude. Processo de destituição do poder familiar gera divergências Recentemente, um caso emblemático de adoção ganhou destaque em Minas Gerais. Em outubro de 2013, uma menina foi retirada dos pais e levada a um abrigo de Contagem, na Grande BH, aos 2 meses, após denúncias de desafeto e abandono. No ano seguinte, ela foi entregue a um casal inscrito no cadastro nacional de adoção. O Ministério Público garantiu, na Justiça, a “destituição do poder familiar” dos pais biológicos, ou seja, a perda dos direitos legais sobre a criança. Mas os genitores recorreram e, em seguida, conseguiram retomar a guarda da garotinha, hoje com 5 anos. A história ficou conhecida como “Caso Duda”. “Eu li o ECA, integralmente umas 30 vezes, além de dezenas de textos e comentários jurídicos. Encontramos artigos que falam explicitamente da preferência sanguínea na tomada de decisões, deixando o fator afetivo gerado pela convivência entre as crianças e as famílias adotantes em segundo plano, de forma apenas interpretativa do texto”, criticou o pai adotivo, Válbio Messias da Silva. Casos como esse poderiam ser evitados se todas as comarcas do Brasil cumprissem o prazo de 120 dias, estipulados por lei, para a destituição do poder familiar. A afirmação é da diretora jurídica da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção, Silvana do Monte Moreira. Embasamento O ECA determina que todas as possibilidades de convocar os pais biológicos para participar desse processo sejam utilizadas . Nem sempre, porém, é fácil encontrá-los, diz Silvana. E a falta de estrutura e de técnicos dificulta ainda mais o trabalho. Para Silvana, esse é o maior erro da lei. “Ao obrigar que todas as chances de localização dos progenitores sejam esgotados, acaba-se esgotando a infância do menor. O ECA dá muito poder à família natural, várias oportunidades de mudança para pais que abandonaram ou maltrataram os próprios filhos”. Quem merece uma segunda chance, na opinião da advogada, é apenas a criança. E a perspectiva de um futuro diferente só virá com um a adoção. “Os abrigos jamais terão o mesmo aconchego de um lar”. “O ideal seria que todas as comarcas cumprissem o prazo de 120 dias de destituição, com a atuação conjunta de juízes, Ministério Público e abrigos” Silvana do Monte Moreira - Diretora jurídica de Associação de Apoio à Adoção
33,3 mil brasileiros aguardam, em todo país, para adotar um filho *Nome fictício