(Lucas Prates)
Aos 26 anos, é o primeiro da família a ingressar no ensino superior. Cursou todo o período escolar em instituições públicas e teve que se esforçar muito para ultrapassar os obstáculos, naturalmente impostos pela baixa renda da família, e conseguir vaga em uma universidade federal. A história é da vida de Félix José Araújo Veloso Junior, mas também diz muito sobre a trajetória de Rejane Guerra Silva. Aos 21 anos, a estudante se orgulha em dizer que será a primeira engenheira da família. Félix será o primeiro “doutor” na casa dos Araújo Veloso.
Assim como milhares de outros jovens pelo país, ambos fazem parte de um novo perfil que, aos poucos, começa a mudar a cara das universidades públicas brasileiras. De acordo com um levantamento divulgado ontem pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o número de alunos negros quase triplicou de 2003 a 2014.
Ainda assim, são menos de 10% dos quase 1 milhão de graduandos. Juntos, negros e pardos já representavam, há dois anos, 47,5% do total de estudantes das universidades federais do Brasil.
Dados do estudo feito em 62 instituições de ensino ainda mostram que dois terços dos universitários têm origem em famílias com renda média de 1,5 salário mínimo. Uma das causas para a mudança no perfil dos estudantes é a implementação da Lei das Cotas, em 2013, que garantiu o acesso de alunos oriundos de escolas públicas e a reserva de vagas para negros, pardos e indígenas.Lucas PratesAMBIÇÃO – Rejane já foca no futuro como engenheira
“Me apaixonei pela engenharia metalúrgica e quis porque quis a faculdade nessa área. E tinha que ser universidade pública, não tinha outro jeito. Se não fosse a cota, com certeza não teria entrado”, afirma Rejane, estudante da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Com uma renda familiar de três salários mínimos, ela não teria condição de arcar com os custos de uma instituição privada.
Hipótese sequer cogitada por Félix, que cursa medicina, também na UFMG. O gasto com a graduação em uma universidade particular está completamente fora da realidade econômica da família dele. Mesmo não pagando pelos estudos, fica difícil acompanhar o ritmo. “O gasto com livros é alto e o curso exige dedicação quase que exclusiva, ficando praticamente impossível estudar e trabalhar. Um amigo que formou me passou os livros, o que ajudou demais”, conta o rapaz.
Essa maior presença da população negra e pobre na universidade pública é resultado de uma série de investimentos. “Há que se reconhecer um investimento da própria população negra e pobre em relação à própria educação. Além disso, nos últimos anos foi feito um investimento muito grande do governo em políticas de reconhecimento e fortalecimento das diversidades e combate às desigualdades nas instituições de ensino públicas, como a Lei de Cotas”, afirma Luciano Mendes de Faria Filho, coordenador do projeto “Pensar a Educação, Pensar o Brasil”, da UFMG.
Desafio de instituições é manter aluno de camadas mais pobres
Se por um lado a mudança no perfil dos estudantes de universidades federais representa um passo em busca de maior igualdade, por outro lado é também um desafio nesse mesmo sentido. Isso porque não basta apenas garantir o ingresso desse aluno de camadas mais populares, mas é preciso ter meios eficientes para evitar a evasão desses estudantes.
“No sentido mais imediato, as universidades precisam rever as políticas de assistência delas. Não basta entrar, é preciso que as pessoas fiquem. E isso significa ampliar essas políticas. Além disso, é necessária uma mudança também na cultura da instituição, que deve abarcar toda essa diversidade”, explica o professor Luciano Mendes de Faria Filho, da UFMG.Lucas PratesPREDILEÇÃO – Lucas Ribeiro sempre estudou em escola pública e escolheu o curso com base no gosto pela bolsa de valores e pelo mercado financeiro
Para quem não é contemplado por nenhum tipo de assistência nas instituições, o jeito é tentar de todas as formas adequar a realidade familiar às necessidades do estudo. “Lá em casa só temos a renda do meu pai. E para não ficar muito longe da universidade e economizar, vim para a casa da minha avó, no Santa Terezinha (região da Pampulha)”, conta Lucas Ribeiro, de 21 anos, aluno de controladoria de finanças da UFMG.
Outra preocupação é com a manutenção das próprias políticas de acesso à universidade. “Os poucos dias do governo interino mostram o quanto a gente pode andar para trás gradativamente em várias áreas. Ainda não se sabe quais e como essas medidas hoje vigentes serão mantidas. Não dá para falar em democracia no ensino superior se temos uma das piores distribuições de renda do mundo. Uma coisa não casa com a outra”, ressalta o professor.
Atualmente, apenas 24% das vagas em universidades brasileiras são em instituições públicas. É um dos menores índices de todo o mundo e, de acordo com especialistas, o ideal seria uma oferta de vagas de 50% a 60%.
“Claro que todos queremos um país que não precisemos de lei de cotas. Mas, para isso, é preciso investimento muito grande em escola básica e temos que continuar com políticas de diminuição das desigualdades econômicas”, avalia Luciano Mendes, que também coordena o projeto “Pensar a Educação, Pensar o Brasil”, da UFMG.