(PEDRO GONTIJO)
No cotidiano de uma metrópole, avistar uma carroça se esquivando dos carros em uma grande avenida pode até parecer inusitado. Mas não em Belo Horizonte. Prestes a completar 120 anos, a capital dos mineiros guarda resquícios da origem rural e, mais que isso, faz saltar aos olhos de quem percorre a região Nordeste uma cena pra lá de pitoresca. Quem ouve falar de Lilica e Furacão já sabe: trata-se de uma cachorrinha que, há cinco anos, “conduz as rédeas” de um cavalo.
A dupla é “filha” de Luís Carlos Barbosa, de 52 anos, que desde os 12 ganha a vida recolhendo entulhos. Confortavelmente acomodada, Lilica percorre BH sentada no lombo de Furacão. Juntos, acompanham Carlos na missão de garantir o ganha-pão, catando papel e garrafas PET. Há 40 anos, o carroceiro deixou Governador Valadares, no Leste de Minas, para morar nas ruas da cidade grande, onde passou a ajudar criadores de animais no bairro Serra (Centro-Sul) até ganhar o primeiro cavalo.
Das 7h às 16h
Atualmente, Carlos tem outros dois ajudantes – além de Furacão, o caçula da família–, Mimoso, de 20 anos, e Periquito, de 17. Para não exigir tanto dos bichos, o carroceiro às vezes alterna entre os três, que percorrem as ruas de Belo Horizonte e da vizinha Contagem, na região metropolitana, entre 7h e 16h.
Não demora muito para o trio começar a atrair a atenção dos primeiros curiosos. São moradores, pedestres e lojistas que acenam, comentam baixinho ou em voz alta. Alguns até registram pelo celular a cena que mais parece episódio de novela. Surpreso, o aposentado José Benevides, de 71 anos, é discreto ao fotografar. “Vim até o bairro resolver uns problemas e achei isso muito diferente. É um cachorro em cima de um cavalo. Nunca tinha visto nada parecido. Bonitinho demais”.
Motoristas também não deixam o “evento” passar batido. Até reduzem a velocidade para cumprimentar o carroceiro e perguntar sobre Lilica. Por onde passa, a cadelinha faz sucesso. “Isso é o dia inteiro. Rodo muito pela avenida Abílio Machado e o pessoal sempre para, pede para tirar foto, conversa, pergunta o nome dela, brinca… Eles adoram, especialmente quando a Lilica levanta”, detalha Carlos.
No depósito onde descarrega o entulho recolhido também não é diferente. “Essa aí é muito mais famosa que o Carlos. Todo mundo quer ver. Estou precisando arranjar um animal desse para botar no meu cavalo. Quem sabe não fico conhecido também?”, brinca André Luiz, de 28 anos, enquanto entrega o que conseguiu armazenar no bairro Guanabara, em Contagem.
Vida muito simples e labuta diária para assegurar o sustento dos três filhos
Companheira de viagem de Carlos, Lilica começou a carreira ainda filhote. O carroceiro conta que resgatou a cachorrinha assim que ela nasceu em um córrego. Acolhida numa caixa de sapatos, Lilica andava, diariamente, com o dono da carroça. Certo dia, Carlos precisou preencher o espaço traseiro do transporte com entulho e teve, então, a ideia de colocar a cachorra entre a sela e o corpo do cavalo.
“Quando vi que ela estava tremendo, apesar de quietinha, pensei: ‘vou ensiná-la a andar só nas costas de Furacão’. Levou uns três dias até que ela ficasse firme, mas, com o tempo, foi se acostumando”, conta. Hoje, quando a cadelinha vê Carlos se preparando para sair de casa, já pula no lombo do irmão mais novo e vai logo ocupando a posição de destaque.
Carro é o lar
Com o dinheiro arrecadado no transporte, Carlos conseguiu construir uma casa, comprar os três cavalos e dois carros. Hoje, ele faz em média duas viagens por dia. Cada uma delas rende ao carroceiro R$ 25, valor que é praticamente todo destinado ao sustento dos três filhos, sobretudo dos mais novos, que ainda estudam. “Minha menina, de 19 anos, faz faculdade. Tiro sempre R$ 30 para que ela possa pagar a passagem e o almoço. Quero muito que eles estudem e tenham uma vida boa, com as condições que eu não pude ter”
Depois de se separar da esposa, Luís Carlos passou a viver em um lote no bairro Guanabara, em Contagem. O local e a vida são simples: o carroceiro dorme dentro de um carro e guarda os pertences no outro, uma carcaça já sem possibilidade de uso. A comida de todos é fruto de doação de um supermercado localizado no mesmo bairro. E a água, retirada do córrego que corta a rua em que vivem.
Para enfrentar as noites frias, o carroceiro liga a caixinha de som pendurada no pescoço e ouve rap. A música e o carinho dos animais é o que faz com que Carlos se mantenha firme e siga em frente. “É tudo o que tenho. São tempos difíceis, mas sou orgulhoso do que conquistei”, comemora.