História eternizada no livro da morte

Letícia Alves - Hoje em Dia
15/03/2015 às 08:50.
Atualizado em 18/11/2021 às 06:21
 (Samuel Costa/Hoje em Dia)

(Samuel Costa/Hoje em Dia)

Livros centenários com páginas envelhecidas, escritos à mão, guardam um fragmento da memória dos primeiros mortos de Belo Horizonte. A história de como e onde antigos moradores da nova capital de Minas faleceram ajuda, até hoje, descendentes e pesquisadores a desvendarem informações importantes sobre o passado.    Os 20 volumes com registros de sepultamento batizados “Livros do Bonfim” são tombados pelo Patrimônio Municipal. Entre as publicações, que datam de apenas 19 dias após a fundação da cidade, está o primeiro livro de registro, com informações de 1898 a 1912, em mais de 500 páginas. Ao todo, 10 mil laudas guardam dados de quem viveu em BH há 117 anos.    Os documentos, encaminhados pela Diretoria de Necrópoles, até dois anos atrás estavam quase destruídos pelo tempo, com danos de todos os tipos, como oxidação e páginas rasgadas e degradadas. Em outubro de 2012, eles foram restaurados e hoje estão disponíveis no Arquivo Público Municipal.    O acervo é bastante procurado como fonte para a construção de árvores genealógicas e para solicitação de cidadania, uma vez que muitos imigrantes estrangeiros chegaram aqui no fim do século 19 e início do século 20. Outro dado importante faz referência à causa da morte. “Isso possibilita uma análise das doenças da época”, explica a chefe do Departamento de Tratamento, Pesquisa e Acesso do Arquivo Público, Lílian Leão.    Para desvendar como o câncer era tratado entre 1923 a 1954, a historiadora do Centro de Memória da Medicina da Faculdade de Medicina da UFMG, Ethel Mizrahy, recorreu aos livros do Bonfim. “Queríamos saber se o atestado de óbito correspondia aos dados registrados no Instituto de Radium de Minas Gerais. Verificamos que a maioria é diferente”.    Ethel descobriu que, nos registros do cemitério, quem vinha a óbito por causa de câncer era identificado com outro tipo de doença, como desnutrição. “Isso acontecia porque o câncer era considerado uma doença maldita. Naquela época, era quase uma ofensa ter câncer, sujava a historia da família”.    Outra curiosidade é o fato de muitas pessoas com a doença falecerem em casa ou em algum trajeto. “Isso acontecia porque eles eram mandados para morrer em casa, já que não havia tratamento para a doença”.    NACIONALIDADE Descendentes desses antigos moradores de BH utilizam os livros do Bonfim para solicitar nova nacionalidade. Esse é o caso do motofretista Wilber Olímpio Leandro, de 37 anos. Ele procura nos documentos o registro de falecimento do tataravô Roberto D’ Olímpio, que veio aos 32 anos de Roma, na Itália, para trabalhar na cidade. “Não tenho a década em que ele morreu, por isso estou tendo de pesquisar em vários livros”.    Wilber quer solicitar a cidadania italiana para ele e para o irmão, que mora em Vitória (ES). Além da origem, os livros mostram a causa da morte e onde os restos mortais foram enterrados.    Jovem belga, filha de engenheiro da comissão construtora, foi a primeira pessoa sepultada    Quem eram, o que faziam e de que morreram são algumas das informações guardadas nos Livros de Registro de Sepultamento do Cemitério do Bonfim. Dados básicos a princípio, mas que com um olhar mais atento revelam detalhes sobre os precursores de BH. O Hoje em Dia pesquisou o material, com exclusividade, e encontrou curiosidades.    A primeira página do Livro Número 1 contém os registros dos 35 moradores da capital falecidos logo após a fundação da cidade. No alto da lista está o nome de Maria Urcelina, que, aos 19 anos, faleceu no dia 3 de janeiro de 1898.    Uma singularidade sobre os registros é a localidade da morte, em muitos casos identificada como “a residência do pai”. Pelo registro, Maria morreu na casa de Addão Luis, pai da jovem.    A chefe do Departamento de Tratamento, Pesquisa e Acesso, Lílian Leão, esclarece que essa situação era muito comum na época. “A cidade era pequena e todos se conheciam”, explica.    Outra situação normal era a morte de pessoas jovens como Maria. Além dela, vários bebês foram registrados nos documentos, após falecerem com poucos meses ou até horas e minutos de vida.    Sem registro Mesmo sendo o primeiro registro do livro, Maria não foi a primeira pessoa oficialmente enterrada no local. A jovem belga Berthe Adele Théreze de Jaegher, que faleceu aos 20 anos, foi sepultada antes mesmo da fundação do cemitério, em fevereiro de 1897.   Segundo historiadora e professora Marcelina das Graças de Almeida, que coordena as visitas guiadas ao cemitério, Berthe era filha de um dos engenheiros da Comissão Construtora da Nova Capital, criada para coordenar a elaboração da cidade.    O enterro só foi permitido porque o pai da jovem recusou-se a sepultá-la em um campo improvisado na Capela Nossa Senhora do Rosário, na rua São Paulo, esquina de avenida Amazonas, de acordo com Marcelina.    “Hoje, no lugar onde estava o túmulo, nasceu uma árvore muito grande e bonita. Ela dá a esse sepultamento um caráter bem romântico”, disse a historiadora.    Até o primeiro calote em cemitério está documentado Os registros do primeiro livro do Cemitério do Bonfim mostram que os sepultamentos, nos anos seguintes à fundação da cidade, custavam em torno de 1.000 contos de réis.   Porém, nem todos tinham dinheiro para pagar o montante. O primeiro calote registrado no novo cemitério ocorreu apenas um mês após a inauguração. Em data não identificada no livro, Onofre Gualtiere não acertou o enterro do filho Argêo, que morreu aos 2 anos de pneumonia.    Fato é que a dívida deve ter sigo paga posteriormente, pois o jazigo da família Gualtiere, de origem italiana, existe até hoje. “Meu pai, João Gualtiere, foi um dos construtores da cidade, mas não me lembro de nenhum Onofre”, diz a filha de João, Maria Salete, de 65 anos, moradora do Prado (região Oeste).   RUA DA MORTE? Depois de poucos dias da fundação da cidade, veio o registro da primeira pessoa assassinada. Está tudo documentado no Bonfim. Em janeiro de 1898, o italiano Adriano Chivilli, de 32 anos, foi morto na rua dos Caetés. Não há outros detalhes sobre ele no livro.    Poucos meses depois, em maio, Antônio Caetano Pereira Júnior acabou assassinado a tiros na mesma rua.    Luxo Além do valor pelo sepultamento, muitas famílias belo-horizontinas não economizavam na hora de decorar os túmulos de seus entes queridos.   Segundo a historiadora e professora Marcelina das Graças de Almeida, as primeiras sepulturas foram trazidas da Europa e eram feitas de mármore.    “À medida que a cidade foi crescendo, foram se instalando aqui marmoristas italianos. Eles começaram a explorar, além do mármore, outros materiais, como o granito e a pedra-sabão”.

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