Quartéis fecham cerco a maus policiais em Minas

Ernesto Braga - Hoje em Dia
31/08/2015 às 06:22.
Atualizado em 17/11/2021 às 01:34
 (Frederico Haikal)

(Frederico Haikal)

Passava de meia-noite quando um rapaz de 25 anos teve a moto parada por militares no bairro Carlos Prates, região Noroeste de BH. Mandaram-no descer do veículo, encostar no muro e levantar as mãos. Procedimento normal na abordagem, até então.

“Depois da revista, um dos policiais me perguntou porque eu olhava para o nome dele, na farda. Me deu um tapa no rosto e disse que se eu quisesse poderia denunciá-lo no batalhão. Não tive coragem”, lamenta o motociclista, que prefere não revelar o nome. O temor dessa vítima de agressão e intimidação é compreensível, mas prejudica a investigação dos desvios de conduta de quem deveria estar nas ruas mantendo a segurança pública.

“Com medo, as pessoas preferem procurar uma ouvidoria fora da polícia ou o Ministério Público para denunciar. Mas, no decorrer da apuração, são chamadas ao quartel e se sentem constrangidas, intimidadas em falar. Às vezes, a denúncia de um fato grave fica esvaziada. O denunciante diz que não era bem isso, que estava nervoso na hora. Pode ser que seja, mas nunca temos essa convicção”, adverte o corregedor da Polícia Militar (PM), coronel Renato Batista Carvalhais.

Ele conduz o que chama de “mudança de foco” na gestão da Corregedoria. A proposta é qualificar a investigação e fechar o cerco a quem não honra a farda da corporação. “Para isso, é preciso dar um tratamento melhor a quem denuncia”, diz.

Casa da Justiça

Uma das novidades é a abertura de salas especiais, fora das unidades da PM, para depoimentos dos denunciantes. São espaços criados em fóruns, numa parceria com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). O primeiro foi aberto no fim de maio em Santa Luzia, na região metropolitana.

“Criar esse espaço no ambiente forense, na casa da Justiça, afasta o temor de procurar a Polícia Militar para denunciar um dos seus integrantes. Além disso, a presença de policiais dá mais segurança ao nosso dia a dia de trabalho”, avalia a juíza Aldina de Carvalho Soares, diretora do fórum Desembargador Pedro Viana, na cidade.

A cessão do espaço em fóruns é válida para todo o Estado e faz parte de um programa da Corregedoria chamado “Justiça e disciplina em primeiro lugar”. A 3ª Região da PM, que abrange Santa Luzia, foi escolhida para o projeto-piloto.

Há subcorregedorias nas 18 regiões da PM em Minas, mas as denúncias são apuradas nos batalhões. “Na 3ª Região, tiramos a apuração da unidade onde o policial denunciado trabalha e levamos para a subcorregedoria. A investigação passou a ser feita por pessoas especializadas. Ficaram no quartel apenas os processos disciplinares, como faltar ao serviço”, explica o corregedor.

Segundo o coronel Carvalhais, no início de setembro será publicada uma resolução do Comando-Geral da PM determinando a adequação das demais regiões. “Portanto, a utilização dos fóruns e a estruturação das subcorregedorias vão acontecer em todo o Estado”.

Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da UFMG, a socióloga Ludmila Lopes Ribeiro considera louváveis as mudanças. “Levar o denunciante para o fórum o aproxima do Ministério Público e permite que a denúncia chegue mais rápido à Justiça”.

A especialista, no entanto, defende mais autonomia para as corregedorias. “O ideal seria que a investigação fosse feita por uma ouvidoria fora da PM, única forma de romper o corporativismo”, diz Ludmila, que também é integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Alarme e gravações para evitar transgressões na tropa

Quatro unidades da Polícia Militar foram escolhidas para testar a “menina dos olhos” da Corregedoria. É como o coronel Carvalhais chama o sistema de alarme prévio, previsto para estar funcionando em todo o Estado até novembro.

O sistema monitora o militar que porventura cometa pequenos desvios de conduta. Quando ele é denunciado, soa um alarme no computador do comandante do policial, que passa a monitorá-lo.

“O comandante vira o interventor e faz o monitoramento do militar durante um período. Algumas medidas já vêm no próprio sistema e podem ser tomadas de imediato, como transferência, treinamento e encaminhamento a psicólogo”, explica o corregedor.

Segundo ele, a intervenção é preventiva, para evitar que o militar se envolva em transgressões mais graves. “Ninguém começa cortando a cabeça, extorquindo, batendo ou invadindo a casa dos outros. Pode ter certeza que um policial com desvio de conduta já cometeu pequenas falhas. Não será nada de disciplinar, com o militar sendo punido na hora que disparar o alarme. Pelo contrário, ele vai merecer atenção. O comandante vai cuidar do seu subordinado”, diz o coronel.

Inspirado em Miami, nos Estados Unidos, o sistema de monitoramento foi premiado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). Os testes estão sendo feitos em quatro batalhões: 34º (Belo Horizonte), 39º e 18º (Contagem, na região metropolitana) e 2º (Juiz de Fora, na Zona da Mata).

Viaturas monitoradas

Outro programa de monitoramento está sendo desenvolvido pela Corregedoria da PM. “Hoje, mais de 90% das viaturas são equipadas com GPS. Estamos montando uma central para acompanhar toda a movimentação delas. Teremos informações, por exemplo, se esses veículos saírem da área de atuação”, afirma o coronel Carvalhais.

O projeto ainda é embrionário. “Quando tivermos com isso bem efetivado, começaremos a fazer gravações de áudio e vídeo do deslocamento das viaturas”.

ENTREVISTA – Coronel Carvalhais

‘Somos muito rigorosos, porque é a essência do militarismo’

Qual a postura da Corregedoria diante das críticas à conduta da PM na manifestação popular no Centro de BH em 19 de agosto?

Quando a Polícia Militar vai para uma manifestação, não é para proibir, o que seria inconstitucional. Ela vai para garantir o direito da pessoa de manifestar e, ao mesmo tempo, assegurar o direito dos demais de ir e vir. Quando a polícia negocia a liberação de uma via e ela não é liberada, a forma de fazer a desobstrução é com o uso da força, porque não estava tendo resultado na negociação. O estopim foi que justamente o comandante que tinha de dar a ordem da desobstrução tomou uma pedrada, de acordo as informações preliminares. Mandei abrir uma apuração sobre isso. Num primeiro momento, entendo que a ação foi correta. Está tudo gravado. O próprio comandante usava uma câmera sobre o capacete. Tudo está sendo analisado na Corregedoria, para identificar se houve abuso.

Qual a conclusão da investigação sobre a droga encontrada no 34º Batalhão da PM, em junho?

Foi feita a prisão de dois sargentos flagrados com a droga e aberto Inquérito Policial Militar pelo próprio comandante do batalhão. Demos todo o apoio da Corregedoria e investigamos durante 40 dias. Em relação à droga encontrada em um armário, não chegamos à autoria. Para que isso não venha ocorrer de novo, fizemos uma instrução para todas as unidades de melhoria do controle dos armários sem donos. Mensalmente, vai haver fiscalização da Corregedoria. Encerramos o inquérito e mandamos para a Justiça. Estamos fazendo o processo demissionário dos militares presos. O fato causou escândalo na corporação. Eles terão direito à ampla defesa e o comandante-geral é que decide pela demissão ou não. Os sargentos não podem andar armados e se apresentam todos os dias no quartel.

Qual o recado para quem acredita que a Corregedoria é corporativista e não pune com rigor?

A atividade de correição não é feita só na Corregedoria. Em todo batalhão, o comandante é um corregedor. Somos muito rigorosos, porque é a essência do militarismo. Temos um sentimento de dever, de ter que fazer a coisa certa. O que acontece muitas vezes é que precisamos decidir sobre um procedimento sem elementos suficientes para levar ao que de fato aconteceu. Seja porque a pessoa não teve coragem de falar, ou mesmo por uma apuração de má qualidade. Por isso está acontecendo de as pessoas poderem ir ao fórum depor, de especializar a investigação, para dar a segurança de que o fato será apurado de forma eficiente.

“As ações anunciadas pela Corregedoria da PM já são realidade na Europa e Estados Unidos. No Brasil e em países africanos, medidas de segurança pública sempre chegam atrasadas” - Ludmila Lopes Ribeiro - socióloga, pesquisadora do Crisp
 

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