“Eu sou o Sebastião Margarida. Do manicômio”. O cumprimento espontâneo do homem de 52 anos é munição para a sentença que está por vir. Como outros dois moradores de Barbacena, na região Central do Estado, ele foi condenado à prisão “perpétua”. Não por um tribunal legítimo, mas pela sociedade, que se recusa a acolhê-lo após ter cumprido pena em um manicômio. Depois de serem considerados aptos para deixar o hospital judiciário – destinado a quem comete um crime, mas não tem condição de responder pelos próprios atos –, os pacientes são encaminhados para residências terapêuticas. Lá, vão ter uma nova “família”, outros portadores de sofrimento mental, vindos de instituições psiquiátricas, e cuidadores especializados. O processo, até esse ponto, já é complicado e burocrático. Mas o desafio maior começa após a “soltura”: a reintegração à sociedade. “Até hoje, eles são cobrados pelo que fizeram. A gente trabalha isso com os pacientes, para que não fiquem contando a vida inteira a todos”, explica a coordenadora de residências terapêuticas da Secretaria de Saúde de Barbacena, Leandra Vilhena Vidal. Na s primeiras desinternações, os vizinhos eram avisados sobre a chegada dos novos moradores. Mas a “recepção” dada a eles, cheia de temores e inconvenientes, levou a uma mudança de estratégia, que inclui preservar o passado. “Tudo era ruim” Como Sebastião, que procura refazer a vida alheio a preconceitos e intolerâncias, Maria Vítor Miranda, de 48 anos, busca um recomeço após quitar a dívida com a Justiça. “Ficava trancada no manicômio o dia inteiro. A comida era ruim, tudo era ruim. Agora, tenho casa e namorado”, conta, sorridente, ao lado de José Pereira, com quem até já trocou alianças. Após passar pouco mais de três anos internada por ter assassinado uma vizinha, ela conseguiu permissão para sair, por meio de um laudo de cessação de periculosidade. O documento atesta que a paciente tem condições de ser reinserida na sociedade, mediante acompanhamento. Mas, na primeira casa onde morou, surgiram os primeiros sintomas do julgamento social. Uma vizinha se incomodou com o histórico de Maria e entrou em contato com a dona do imóvel. Dias depois, a proprietária cancelou o contrato de aluguel. No controle Anéis, relógios e correntes que tanto Maria quanto Sebastião fazem questão de usar deixam clara a abstinência no período em que os adornos eram armas, e o tempo, impossível de ser controlado. “Agora, eles estão reaprendendo a administrar a própria vida e ninguém tem o direito de interferir. Cabe a cada um saber conviver com as diferenças”, afirma Leandra. “De lá (manicômio), só sai quando fechar o olho (morrer). Era assim que eu pensava. Até tentei morrer, para não ter que ficar ali pro resto da vida. Ainda bem que apareceu ajuda”, lembra Sebastião. Hoje, com a conta paga pelo homicídio que cometeu durante um surto, ele faz planos para o futuro. “Fiquei noivo. Gosto muito da Marcilene porque a gente sai junto, vai pro forró e dá tudo certo. Vamos casar, não é?”, pergunta para a noiva, que responde com um sorriso e um balançar de cabeça frenético. “Ele até já conhece minha filha. Ela é linda. Linda mesmo. Uma família, agora”, diz Marcilene, também portadora de sofrimento mental, que passou grande parte da vida em um hospital psiquiátrico particular. O adeus do "monstro" que temia pessoas O abrigo na residência terapêutica e a certeza de que o passado ficará guardado a sete chaves – algo fundamental, dependendo do histórico do morador –, são as únicas garantias de um horizonte melhor para ex-internos de manicômios judiciários. Mesmo que por pouco tempo. Foi em uma dessas casas de Barbacena que o criminoso mais temido de Minas no fim da década de 70 passou os últimos dias de vida. Orlando Sabino, que ficou conhecido como “Monstro de Capinópolis”, hoje é lembrado apenas pelo nome em uma lápide sem data de nascimento ou morte, no cemitério da Saudade. Os vizinhos e quem mais conviveu com ele não tinham noção de que Orlando, acusado de matar quase 30 pessoas e dezenas de animais em Minas e Goiás, protagonizou pesadelos de mineiros por muito tempo e passou 27 anos internado no hospital judiciário. “Essa história, com certeza, não batia com o que ele era, um homem com medo das pessoas e superdócil com todos. Um Orlando que não se encaixa no imaginário popular construído”, relata a coordenadora de residências terapêuticas da Secretaria de Saúde de Barbacena, Leandra Vilhena Vidal. Calado e introspectivo, o senhor de 67 anos gostava de ir à mercearia, onde era benquisto pelo dono, que desconhecia a história do cliente. Portador de sofrimento mental, ele não falava do passado, nunca foi procurado por parentes nem recebia visita de conhecidos. “Por isso, é tão importante a existência de programas para acolher pessoas que já pagaram o que devem e, em alguns casos, mais do que devem à Justiça”, afirma a psicóloga do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ), Rosane Campos. “Como tinha que ser” Com benefícios do governo que somavam cerca de R$ 800, Orlando comprava alguns alimentos de que gostava e roupas, prazeres limitados durante quase toda a vida. Os gastos mais altos eram com passeios para um hotel-fazenda com os companheiros da residência e aulas de hidroginástica. Em 8 de junho deste ano, ele foi encontrado morto dentro do quarto, vítima de um infarto. “Partiu sendo o Orlando que tinha medo das pessoas, que era carinhoso e tímido. Um senhor idoso como muitos outros, e nada mais. Como tinha que ser”, lembra Leandra. Inimputáveis não são os mais perigosos, diz especialista Diferentemente da associação que é feita pela sociedade em geral, um criminoso inimputável – incapaz de responder pelos próprios atos – não é o mais perigoso. Por ser portador de um sofrimento mental, em geral tratável, o risco que oferece às pessoas pode ser controlado. Regra que não se aplica a outros casos, segundo especialistas. “É claro que o inimputável, no momento do surto, é muito perigoso, mas esse quadro pode ser mudado em um mês. O psicopata, em um mês, nunca vai mudar a personalidade. Nem com medicamentos você consegue mudar a situação de um estuprador sádico ou de um sequestrador”, explica o psiquiatra forense Paulo Repsold. O entendimento controverso acaba alimentando o preconceito das pessoas que associam a loucura ao crime. “A periculosidade não tem a ver com a inimputabilidade, mas com a personalidade”, afirma Repsold. Segundo ele, em condições ideais de tratamento, os pacientes que cometeram crimes tornam-se portadores de sofrimento mental comuns. O que não significa, necessariamente, ser mais bem aceito pela sociedade ou pelo Estado. Não são raros os pacientes esquecidos nos hospitais. Como “seu” Manuelzinho, que passou mais de 40 anos em tratamento. Considerado mudo, tornou-se “falante” fora do manicômio. “Mais do que uma questão de saúde ou de Justiça, estamos falando de aceitação das diferenças. Isso não está relacionado ao crime, mas à doença”, avalia o psiquiatra.