Trauma pessoal dá lugar à solidariedade e ajuda outras pessoas a superar a dor

Cinthya Oliveira
cioliveira@hojeemdia.com.br
26/12/2016 às 18:33.
Atualizado em 15/11/2021 às 22:13

Ver uma pessoa amada enfrentar uma doença grave ou perder alguém querido são processos que provocam dores imensuráveis. Mas há quem, mesmo passando por momentos tão difíceis, consiga transformar o sofrimento em solidariedade e hoje se dedique a confortar desconhecidos que vivem dramas parecidos. 


Um exemplo recente é o da mãe do goleiro Danilo, da Chapecoense, morto no acidente aéreo com o time de futebol. Em meio à tristeza, dona Ilaíde teve forças para consolar um jornalista que também viu colegas morrerem na tragédia.

Em Belo Horizonte a Rede de Apoio a Perdas Irreparáveis (API) se tornou uma referência para quem tenta superar a partida de alguém. Nesse projeto, pessoas se reúnem para falar sobre o luto, a dor e a saudade. O contato com outros que compartilham da mesma situação acaba permitindo trabalhar melhor os sentimentos. 

O grupo foi criado há 18 anos pelo médico Eduardo Tavares e pela esposa dele, a psicóloga Gláucia Tavares. Eles haviam perdido a filha de 18 anos em um acidente de carro. Na época, o casal procurou um grupo de apoio ao luto, mas não encontrou. “Logo que aconteceu o evento, tivemos muito apoio de familiares e amigos. Mas, conforme a vida foi voltando ao normal, as pessoas passaram a evitar o assunto, e nós continuávamos com a necessidade de falar”, lembra Eduardo. 

A primeira reunião aconteceu em outubro de 1998, no prédio onde o casal morava. Outros pais que haviam perdido os filhos participaram do encontro. No início, os encontros aconteciam cada dia na casa de um participante. O grupo foi crescendo e apareceram pessoas que tinham outros perfis de luto, não somente ligados a perda de um filho. Hoje, são 5 mil famílias cadastradas e as reuniões, quinzenais.

no Belvedere


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Para compartilhar ainda mais a experiência vivida com o API, Eduardo e Gláucia publicaram dois livros: “Do Luto à Luta” e o recém-lançado “E a Vida Continua”. São textos com diferentes abordagens sobre a dificuldade de lidar com o luto e depoimentos de quem passou pelo grupo. 

O grupo foi criado porque precisávamos de ajuda. Agora, vemos que uns ajudam os outros, que há uma troca. Porque a dor não passa, mas aprendemos a lidar com ela”, diz Eduardo. 

Para a psicanalista Juliana M. Caldeira Borges, a vivência do luto é importante para todas as pessoas em situação de perda. “Cercar-se das lembranças de quem partiu ajuda muito a dar conta da falta da convivência diária”, observa.

Mas acrescenta que, após um tempo, é necessário ressignificar a falta de outra maneira. “Criar alternativas para a ausência é uma tentativa de refazer o laço amoroso. A troca de experiências em grupos de apoio ou em encontros com pessoas que sofrem pela perda é também um modo de presentificar o ser amado e mantê-lo vivo, representado no bem que se pode fazer a elas, ajudando-as a sentir que sua dor é compreendida e que a solidariedade traz apoio e amparo”.

 Flávio Taves/Hoje em Dia Quinzenalmente, Patricia Pettersen vai ao Hospital Mário Penna para dar carinho aos pacientes durante as sessões de quimioterapia

Depois de cuidar da tia, maquiadora levanta a autoestima de quem sofre com o câncer

Há quem use a própria profissão para ajudar o próximo, sem pedir nada em troca. Que o diga a maquiadora Patricia Pettersen, de 52 anos. Ela percebeu que poderia fazer a diferença na vida de pacientes com câncer ao cuidar de uma tia doente. 

“Num dia de festa, fiz uma maquiagem especial nela. Consegui colocar cílios postiços, o que foi difícil porque os naturais haviam caído, e desenhei bem a sobrancelha. Ela ficou tão feliz que decidi fazer isso por outras pessoas com câncer”, diz.

Há dois anos, Patricia integra o corpo de 130 voluntários que atuam no Hospital Mário Penna, referência em oncologia. Quinzenalmente, ela vai até o setor de quimioterapia para oferecer cuidados. 

Autoestima
Nas mulheres, Patricia faz maquiagem, enquanto nos homens passa produtos para limpar e proteger a pele, uma atenção que deve ser ainda maior por quem está passando por quimioterapia. 

"Trabalho a autoestima. É muito legal ouvir que as mulheres foram elogiadas em casa. Elas se preocupam muito com o que os maridos pensam durante o tratamento”, conta Patricia, que banca do próprio bolso [TEXTO]todos os produtos usados no trabalho.

“Outro dia tinha algumas meninas perguntando: cadê a maquiadora?”, conta Elenice Silva Batista, de 62 anos, que trata o câncer há dez meses no Mário Penna.

Segundo ela, a presença de Patricia é celebrada na quimioterapia não apenas pela maquiagem, mas pelo alto astral que a voluntária demonstra para os pacientes, que chegam a ficar mais de oito horas no local para uma sessão. “Ela é muito divertida, põe música para nós, conversa, conta histórias. Tem cuidado com todos, nos sentimos melhores”, diz Elenice.
 Lucas Prates/Hoje em Dia  Matosinho conquistou um imóvel no bairro Nova Esperança, na região Noroeste, para a Leuceminas

Pai de paciente abre casa para abrigar pessoas com leucemia

Era o melhor momento da vida de Antônio Firmino Matosinho. Em 1977, ele estava empregado em uma empresa multinacional de siderurgia. Em casa, a filhinha de 3 anos alegrava a família. Num dia de passeio, porém, a garotinha passou mal e desmaiou. Dias depois, veio o diagnóstico: ela estava com leucemia. 
Durante o tratamento da filha, Matosinho percebeu que havia muitos outros pacientes e vários deles passavam necessidade – especialmente os que vinham do interior do Estado para se tratar na capital. 

Ele e outros oito pais de doentes decidiram fazer a diferença. Alugaram uma casa na rua Padre Eustáquio, na região Noroeste, para abrigar pacientes que estavam na Santa Casa. Começava ali a semente do que depois seria transformado na Associação dos Leucêmicos do Estado de Minas Gerais (Leuceminas), uma associação beneficente que ajuda pacientes de diferentes idades. 

A filha de Matosinho sobreviveu, e ele fez questão de continuar ajudando outras famílias. Há 17 anos, conseguiu que a prefeitura doasse para a entidade uma casa no bairro Nova Esperança, também na região Noroeste da capital. 

O imóvel acaba de passar por uma reforma e tem condições de atender a 82 pacientes e o mesmo número de acompanhantes. Atualmente, além das pessoas hospedadas, a Leuceminas ajuda outras 170 com doação de cestas básicas e leite. 

Doações
A entidade não recebe dinheiro público. Os 27 anos de trajetória da instituição foram construídos com doações e trabalho voluntário. Boa parte do investimento feito na reforma do espaço veio das reservas de Matosinho. 

“A casa não tem empregados. A manutenção é feita pelos acompanhantes. As pessoas cuidam primeiro de seus pacientes e depois ajudam a cuidar da casa. E tudo que chega é dividido”, conta Matosinho, de 77 anos. 

Segundo ele, quando há doação de roupas, os hóspedes pegam as peças que lhes servem e o restante alimenta um bazar cuja renda é revertida para a casa. 

Quem quiser doar roupas, alimentos e produtos de higiene para a Leuceminas, pode ligar 3412-4187 ou visitar a casa na avenida Américo Vespúcio, 2000


A Leuceminas é hoje a prioridade máxima na vida de Matosinho. “Antes eu conciliava com o trabalho. Costumo brincar que, no início, a casa precisava de mim para articular as doações. Hoje, já sou eu que preciso desse espaço, para ocupar bem o meu tempo de aposentado”, diz.

Além disso

Em 1999, a jornalista Flávia Freitas perdeu o irmão, que lutava contra a leucemia. Pouco tempo depois, a prima dela passou por um tratamento da mesma doença e a jornalista decidiu criar um projeto que ajudasse na busca por um doador de medula óssea. “Para mobilizar e incentivar a doação, criei, em 2011, a campanha Quinta do Bem. A ideia é que, às quintas-feiras, mulheres usem lenço na cabeça e homens fita vermelha no braço. Para divulgar a ação, as pessoas postam as fotos de apoio nas redes sociais e podem enviar também para a minha página no Facebook, que se chama Comunique Bem”, explica Flávia, que também transformou o projeto em uma revista em quadrinhos. 

A prima da jornalista não sobreviveu, mas a campanha permaneceu e se fortaleceu. “Nesses cinco anos observo o engajamento e a mobilização maior das pessoas para incentivar a doação de medula óssea. Recebo contato de familiares e pacientes de várias cidades do Brasil e de outros países, e é maravilhoso ver como as redes sociais podem contribuir para aproximar as pessoas e possibilitar a criação de redes para ajudar a salvar vidas”, conta. 

Confira o vídeo que mostra o trabalho da maquiadora Patricia Pettersen:

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