(Cristiano Machado)
O pequeno globo terrestre pendurado na entrada da “casa” tem tudo a ver com Aparecido da Silva, de 42 anos. Nascido em Quitimbu, distrito de Custódia, no sertão pernambucano, ele viveu por mais três décadas em cidades paulistas antes de chegar a Belo Horizonte.
Há um ano, o “desenhista profissional”, como ele se intitula, “fixou residência” debaixo de uma passarela da avenida Cristiano Machado, no bairro da Graça, na região Nordeste. Ao contrário de grande parte dos moradores de rua, que perambula de marquise em marquise, Aparecido transformou o pequeno espaço numa habitação improvisada.
Levantou as “paredes” com pedaços de lona, plástico e cobertores. Dentro do “imóvel”, usa carrinhos de supermercado para guardar objetos pessoais, de higiene e quinquilharias. Na decoração, bonecos, ilustrações e desenhos feitos por ele, pregados na estrutura de metal da passarela.
Abordado duas vezes por assistentes sociais da prefeitura, Aparecido preferiu continuar no local. “Não quero ir para abrigo. A gente tem que sair de manhã cedo e em determinado horário não consegue mais entrar. Em primeiro lugar, respeito todos os pedestres que passam por aqui, onde pretendo ficar até o fim da minha vida”, afirma.
Perfil
Coordenadora do Comitê de Política Municipal para a População de Rua de BH, a pedagoga Soraya Romina explica que as pessoas que vivem nessa situação são divididas em três perfis. Como Aparecido, há aquelas que ficam por muito tempo “morando” no mesmo espaço, em casas improvisadas.
“É aquela pessoa que vive sozinha e encontra a ambiência favorável em determinado local, em condição de sobrevivência, recebendo doações. Passa a ter o respeito e o reconhecimento da sociedade”, ressalta a especialista.
Há moradores de rua que preferem viver em grupos, que exercem o papel de famílias substitutas. “Uma forma que encontram para se proteger”, afirma Soraya. O terceiro perfil apontado por ela são de grupos flutuantes. “São aqueles que chamamos de andarilhos, que vivem mudando de regiões da cidade”, diz.
Área de lazer criada em praça para desafios no jogo de damas
Em um canto, prateleira com livros: “Farda, fardão, camisola de dormir”, de Jorge Amado, e “O que você deve saber sobre os psicotrópicos – A viagem sem bilhete de volta”, escrito por José Elias Murad em 1972, estão entre as obras.
Ao lado, um improvisado tabuleiro de damas. Também há balanço feito com pneu de moto, enfeites nas luminárias e bandeira do Brasil pendurada. Tudo isso emoldurado pelo colorido das flores.
A “área de lazer” foi criada por Lindemberg Beltrão dos Santos, de 48 anos, na pequena praça Antônio Xavier, no bairro Cidade Nova, Nordeste de BH, escolhida por ele como moradia há cinco. Deixou para trás uma casa no Jardim Vitória, na mesma região, a mulher e duas filhas.
Avesso a fotografias, é acompanhado sempre de perto pelo fiel amigo, o cachorro Pretinho. “Além do documento, carrego comigo apenas a liberdade. Aqui recebo minhas visitas e nunca perdi uma partida de damas”, resume.
Com tanto capricho ao aparar a grama e aguar as plantas, ganhou o apelido de zelador da praça. “Teve um Natal que os moradores fizeram uma caixinha para me dar. Rendeu R$ 700, mas eu não quis o dinheiro. Pedi que comprassem mudas”, orgulha-se, apontando para as rosas no jardim.
Desafio é tornar atrativa oferta de abrigos contra a violência
Feito em 2014 pela Secretaria Municipal de Assistência Social, o Censo da População de Rua de BH apontou 1.827 pessoas nessa situação. Boa parte (33,5%) admitiu falta de interesse pelos abrigos oferecidos pela prefeitura por causa da inflexibilidade de horários e das regras.
Convencê-las é o grande desafio das equipes de abordagens. “Nossos técnicos usam a via do convencimento, pois não podemos tirar ninguém à força das ruas, de forma compulsória. É muito duro esse caminho de volta, pois são pessoas que romperam a lógica da regra, da convivência social”, diz a pedagoga Soraya Romina.
Coordenadora do Comitê de Política Municipal para a População de Rua de BH, ela ressalta que embora haja o reconhecimento de parte da população pelo zelo de Lidemberg Beltrão dos Santos com a praça Antônio Xavier, pessoas como ele ficam expostas aos riscos de morar na rua. “Expostas à violência, aos intempéries do tempo, ao preconceito, à invisibilidade social”, enumera.
Para a especialista, a crise econômica pode ter provocado o crescimento da população de rua na capital mineira, a exemplo de todo o país. Segundo ela, não há previsão de que seja feito novo censo, uma vez que a contagem executada em 2014 tem validade de dez anos.