A Quarta-feira de Cinzas (14) amanheceu com chuva no Rio de Janeiro, o que não impediu a saída do bloco das Mulheres Rodadas, que fez seu quarto desfile a partir do Largo do Marchado, na zona sul, em direção ao Parque do Flamengo. O primeiro bloco feminista do carnaval carioca foi para as ruas “rodar e sambar na cara do machismo, racismo e homofobia”, segundo os integrantes.
Tendo como lema os versos de Doces Bárbaros – Com amor no coração / preparamos a invasão / cheios de felicidade / Entramos na cidade amada – homens e mulheres seguiram com atabaques, sopros e muita purpurina, glitter e flores. Em pernas de pau, mulheres se vestiram de personagens da história, como Dandara, Chiquinha Gonzaga, Rita Lee, Gal Costa, Maria Bonita, Gabriela e Elke Maravilha.
No repertório, músicas como Marinheiro só (Clementina de Jesus), Alguém me avisou (Dona Ivone Lara), Ô abre alas (Chiquinha Gonzaga) e Lenda das Sereias (Marisa Monte). Uma das fundadoras do bloco, a jornalista Renata Rodrigues, lembrou que o bloco foi um dos incentivadores iniciais das campanhas contra o assédio no carnaval, que neste ano reuniu 23 blocos, em sete cidades do Brasil, para extravasar e dizer para a sociedade que "quem decide sobre o corpo de uma mulher é ela".
“Antes, as mulheres estavam nos blocos em menor quantidade,. Hoje temos repercussão do que falamos, o que é uma faca dois gumes, porque quanto mais a gente aparece, mais atraí esse tipo de coisa. O problema é que você esbarra em limitações sociais, com muita gente com intolerância muito grande, e problemas do poder público, de não haver políticas de repressão. Mas isso não tem volta, a gente não vai retroceder por causa disso”.
Segundo Renata, o limite entre a cantada e o assédio é o “não”. E Não é não, como diz o lema da campanha.
“As mulheres estão mais informadas sobre isso, estão menos tolerantes. Ainda temos muito o que caminhar em relação a isso. As pessoas fazem muita confusão, 'é só um elogio', 'é só uma cantada', 'qual é a diferença entre assédio e cantada'. E nessa suposta confusão, aproveitam para passar de vários limites. Há pouco tempo,foi divulgada uma pesquisa em que a maioria dos homens achava que mulher que está nas ruas no carnaval não pode reclamar de ser assediada. O que eu acho que melhorou foi o nível de informação e a discussão. Mas para isso ter impacto, mesmo na diminuição do número de casos, ainda vai longo tempo.”
Vestido de noiva, o ator Alê Arruda se preparava para tocar percussão com as Mulheres Rodadas. Ele disse que toca em 14 blocos e está há três com as feministas, contribuindo para a luta contra o machismo estrutural da sociedade brasileira.
“É super importante a poder ajudar nessa causa, divulgar e fazer com que as mulheres tenham os mesmos direitos, nunca menos. Já passou da hora desse momento acontecer e do machismo cair, ruir, desaparecer. Isso é cultural. Então, vira e mexe a gente se pega com um detalhe de machismo aqui e outro ali, mas estamos tentando melhorar dia após dia. Como é coisa cultural, então isso vai demorar muito tempo, mesmo até que as pessoas entendam e a cultura se transforme”.
Conscientização
Vestida de Frida Khalo, a enfermeira Niédia Melo dos Santos levou a filha Gabriela, de dois anos e meio, para rodar com as mulheres e aprender sobre a importância de uma sociedade igualitária e sem preconceitos nem intolerâncias.
“É a conscientização desde cedo, para ela ver estilo de pessoas, de grupos. Levei para o ato contra a intolerância religiosa também. Sei que ela não entende ainda, mas é para ir participando e aos poucos entender a complexidade da nossa sociedade e das pessoas”.
Niédia diz que não percebeu a diminuição do assédio, na prática, mas acha as mulheres estão mais conscientes sobre o problema. “É uma conscientização que tenho percebido por parte das mulheres. Os homens ainda estão bem resistentes, tentam questionar o porquê desse movimento, acham exagerado. E a gente vai no dia a dia tentando abrir e expandir a ideia também para os homens, para chegar junto, não afastar e tentar ter a mesma ideia de sociedade igualitária”.
Homenagem
O Bloco das Mulheres Rodadas saiu mais triste este ano. Em setembro, a integrante Márcia Benevides, que tinha se juntado ao grupo em 2017 e estava participando das oficinas de percussão para aprender a tocar agogô, foi assassinada pelo ex-companheiro, em uma briga, durante o processo de separação. “Para nós é muito chocante, porque é uma de nós. Uma de nós foi morta, ela estaria aqui hoje”, disse Renata, emocionada, explicando que a primeira música do cortejo, Folhas secas, de Nelson Cavaquinho, foi uma homenagem a Márcia, que era mangueirense.