Perspectiva RacialUm espaço para mostrar como o racismo se revela no cotidiano, a fim de que toda a sociedade compreenda a importância de se engajar nessa luta. Andreia Pereira é doutora em Literatura (UnB), servidora pública federal, jornalista, professora, pesquisadora e palestrante.

Lacunas na história

28/09/2021 às 15:23.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:57

Sempre gostei da disciplina de história. Lembro-me que, no ensino médio, aguardava com ansiedade os horários dedicados a desvendar o passado. Anos depois, pude revisitar os tempos remotos e aprofundar em questões que nem sempre estão nos livros. Recentemente, à procura de alguns títulos, resgatei alguns livros de história, entre eles, o do ensino médio.

Folheei as páginas, nas quais não tocava há quase 18 anos, em busca do capítulo que trata do Segundo Reinado no Brasil, a fim de verificar como os autores abordaram a questão do negro nesse período. Não foi nenhuma surpresa ver que, ao abordar o fim da escravidão, nem duas páginas completas foram dedicadas ao assunto.

A Lei do Ventre Livre, promulgada pela lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, há exatos 150 anos, é apenas mencionada em dois parágrafos. Não há detalhamento que explique o contexto e as questões envolvidas nesse processo. E, só muito tempo depois de concluir a educação básica, é que pude entender que deveria haver, no mínimo, umas dez páginas, em um livro didático, para elucidar todo o nosso processo abolicionista.

É preciso destacar que a Lei do Ventre Livre também não foi um reconhecimento da gravidade de se escravizar crianças, até porque, no sistema escravocrata, todos os negros eram objetos, propriedades, inclusive as crianças. Vale notar que a lei, em momento nenhum, denomina os menores que nasceriam “livres” como crianças. Entre os termos, estão: “Os filhos de mulher escrava”, “Qualquer desses menores” e “Os ditos filhos menores”.

“A proposta declarava livres os filhos de mulher escrava nascidos após a lei, os quais ficariam em poder dos senhores de suas mães até a idade de oito anos. A partir dessa idade, os senhores podiam optar entre receber do Estado uma indenização ou utilizar os serviços do menor até completar 21 anos”, relata o autor Boris Fausto no livro “História do Brasil”, que, felizmente, traz mais do que duas páginas para discorrer sobre o assunto.

Além de outros motivos, a Lei do Ventre Livre foi uma estratégia para paulatinamente libertar os negros sem desestabilizar abruptamente o sistema agrário. Foi, na verdade, uma artimanha, como já havia acontecido com a aprovação da lei que deu origem à famosa expressão “para inglês ver”: a lei  581, de 4 de setembro de 1850, conhecida como Lei Eusébio de Queirós, que tentou acabar com o tráfico negreiro.

Os livros também não explicam com a clareza devida a repercussão do movimento abolicionista, que se impulsiona a partir de 1880 e que culmina na abolição da escravatura em 1888 e na luta antirracista até os dias de hoje. Não restam dúvidas, além de reler, é preciso reescrever a história. 

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