Ao longo de quase três intermináveis anos de governo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, coleciona uma série de frases de efeito que quase sempre deixam escapar sua visão distorcida e elitista da realidade brasileira. Na última delas, sugeriu resolver o problema da fome, que se aprofundou nos últimos meses em função da pandemia e da catastrófica política econômica dirigida por ele, ofertando aos famélicos as sobras de comidas dos restaurantes, dos lares, e permitindo aos mesmos o consumo a preços reduzidos de produtos com data de validade vencida. Parece piada de mau gosto, mas é exatamente assim que o governo brasileiro encara o aumento da miséria.
Durante o Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento, promovido pela Abras (Associação Brasileira de Supermercados), o ministro da Economia em seu pronunciamento defendeu a mudança da regra que trata da validade dos alimentos para propiciar à população de baixa renda adquirir esses produtos a preços menores. Além disso, culpou a classe média pelo desperdício nas refeições e sugeriu que as sobras dos restaurantes deveriam alimentar quem tem fome. Tais declarações, além de infundadas e desrespeitosas, significam uma ofensa a um país com a produção de alimentos que possui o Brasil e que jamais deveria viver sob a ameaça da insegurança alimentar.
Em primeiro lugar é triste constatar que em um país com mais de 19 milhões de pessoas convivendo com a fome, 30% dos alimentos produzidos sejam desperdiçados. Contudo, para esclarecer ao ministro, é importante dizer que a colheita, o transporte, o armazenamento, as perdas no comércio e no varejo representam mais de 90% desse descarte. Combater o desperdício significa políticas do governo em infraestrutura para melhorar as condições de transporte de nossos grãos, com novas estradas, ferrovias e hidrovias. Apoiar a mecanização no campo, o armazenamento dos alimentos nas fazendas e investir na agricultura familiar. A população brasileira é bastante solidária e divide o pouco que tem. A pandemia nos traz inúmeros exemplos, mas isso tem limites quando se trata de um problema que apenas uma política de governo é capaz de resolver.
Infelizmente, o CadÚnico (instrumento de coleta de dados e informações de famílias de baixa para fins de inclusão em programas de assistência social) registra atualmente cerca de 14,5 milhões de famílias (aproximadamente 40 milhões de pessoas) em situação de extrema pobreza. Este número mostra ainda um crescimento de um milhão a mais de famílias (com renda per capta de até 89 reais) se comparado com fevereiro de 2020. Outras 2,8 milhões de famílias vivem com renda per capta entre 90 e 178 reais, o que torna a situação social do país ainda mais dramática.
Se Paulo Guedes estivesse preocupado em combater a fome, as políticas econômicas implementadas por seu Ministério seriam outras e ele não estaria contra um auxílio emergencial digno, nem tampouco o desemprego seria tão alto e a inflação sobre os alimentos e os combustíveis não subiria tanto. É uma contradição o ministro falar da fome no Brasil para uma plateia de donos de supermercados, justamente um setor que lucrou tanto com a pandemia.
A fome no Brasil é eminentemente uma decisão política. Somos um dos maiores produtores mundiais de grãos e de proteína animal. Dominamos, através de institutos de pesquisas e de universidades, as mais modernas tecnologias de plantio e de criação de animais. Temos uma complexa indústria alimentícia que exporta para várias partes do mundo. A população mais pobre do Brasil não merece comer as sobras de restaurantes ou produtos vencidos das prateleiras dos donos de supermercados. O aumento da miséria é diretamente proporcional ao abandono das políticas sociais e ao aprofundamento das crises sanitárias e econômicas que assolam o Brasil sob os comandos de Bolsonaro e de Paulo Guedes.
Depois de reclamar da entrada do filho do porteiro na universidade, afirmar que empregada doméstica não pode ir à Disney e chamar funcionário público de parasita, agora chegou a vez de o ministro da Economia desdenhar de quem tem fome.